Acórdão n.º 355/97, de 07 de Junho de 1997

Acórdão n.º 355/97 - Processo n.º 182/97 Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional: I 1 - O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 278.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República (CR), 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (este último na redacção da Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro), a apreciação preventiva da constitucionalidade de todas as normas do decreto do Governo registado na Presidência do Conselho de Ministros com o n.º 110/97, recebido na Presidência da República no dia 11 de Abril de 1997 para ser promulgado comodecreto-lei.

O requerimento foi apresentado na secretaria do Tribunal Constitucional em 18 do mesmo mês, pelo que o pedido mostra-se tempestivo.

2 - Pretende o Governo por via deste diploma, feito ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da CR, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 10/91, de 29 de Abril - Lei de Protecção de Dados Pessoais face à Informática -, com a redacção dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 28/94, de 29 de Agosto, após audição da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados (CNPDPI), constituir ficheiros automatizados em cada um dos Centros Regionais de Oncologia de Lisboa, Porto e Coimbra do Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil (IPOFG), criados pela Portaria n.º 35/88, de 16 de Janeiro, bem como dos registos oncológicos criados em cada instituição de saúde por essa portaria e pela Portaria n.º 282/88, de 4 de Maio.

A breve nota preambular que acompanha o texto dá notícia dos objectivos que se pretendem alcançar: 'A necessidade de se estudar sistematicamente a evolução das doenças do foro oncológico, com envolvimento de todas as unidades de saúde hospitalares na prevenção, tratamento e seguimento a longo prazo dos doentes portadores deste tipo de doença, levou à adopção de medidas implementadoras de uma colheita sistematizada de dados, sua análise e interpretação, criando-se os registos oncológicos com colheita de dados ao nível das instituições de saúde e tratamento da informação a nível regional.

As novas técnicas de tratamento de informação são agora aplicadas aos registos oncológicos, efectuando-se a informatização dos dados pessoais com rigoroso respeito dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, nomeadamente a reserva da intimidade da vida privada e garantia da confidencialidade dos dados clínicos.' O conteúdo normativo do articulado suscita ao Presidente da República dúvidas de conformidade constitucional do decreto, pelo que, assim, vem requerer 'a apreciação da constitucionalidade de todas as suas normas com fundamento em eventual violação da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República consagrada no artigo 168.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, dado poder entender-se tratar-se de legislação no domínio dos direitos, liberdades e garantias, designadamente no direito à autodeterminação informacional, especificamente concretizado no artigo 35.º, n.º 1, 2, 3 e 4, da Constituição e no artigo 11.º, n.º 1, alínea b), e 3, e artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 10/91, de 29 de Abril, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 28/94, de 29 de Agosto, no direito à reserva da intimidade da vida privada do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição e no direito à confidencialidade dos dados médicos que resulta do artigo 13.º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 20 de Agosto, e do artigo 3.º, n.º 4, alínea c), do Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro'.

3 - A retórica argumentativa utilizada pelo Presidente da República para fundamentar o seu pedido radica no preceito constitucional da alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º, segundo o qual é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao Governo, sobre direitos, liberdades e garantias, verificando que o decreto em exame emana do exercício da competência legislativa própria do Governo - alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da CR.

Pergunta-se, assim, se o acto legislativo que cria ficheiros automatizados a constituir nos registos oncológicos regionais e, bem assim, nos registos oncológicos existentes nas instituições de saúde, com a finalidade de organizar, analisar e interpretar os dados relativos a doentes oncológicos não comportará matéria do domínio dos direitos, liberdades e garantias - o que, a merecer resposta afirmativa, afectaria todo o diploma, por violação daquele artigo 168.º, n.º 1, alínea b).

Alega-se, em síntese:

  1. A Constituição da República consagra no seu artigo 35.º o chamado 'direito fundamental à autodeterminação informacional', por sua vez integrado por diferentes direitos, liberdades e garantias, entre estas se destacando - n.º 3 do preceito - a de a informática não poder ser utilizada para tratamento de dados referentes à vida privada.

    Os dados pessoais referentes ao estado de saúde - e particularmente no domínio das doenças de foro oncológico - integram a esfera da vida privada, sendo certo que esta, pela sua conceituação 'aberta', exige concretização e implica um grau diferenciado de protecção e inviolabilidade, não significando, porém, uma proibição total, permanente e absoluta de tratamento automatizado de quaisquer dados pessoais relacionados com a vida privada (e o estado de saúde) - como, de resto, decorre da parte final do próprio n.º 3 do artigo 35.º e tem precipitação na lei ordinária (cf. os artigos 11.º, n.º 3, e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 10/91, na redacção da Lei n.º 28/94).

    Com efeito, admitida a possibilidade de tratamento automatizado de certos dados de saúde, mas com as garantias que devem acompanhar qualquer intervenção na área dos direitos, liberdades e garantias - e, desde logo e explicitamente, a autorização e definição dos termos da intervenção através de lei especial (artigo 17.º, n.º 1) -, a correcta interpretação de normas como as dos n.º 1 e 3 do artigo 11.º e n.º 1 do artigo 17.º, citados, a única conforme à Constituição, passa por, de acordo com a mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 168.º da lei fundamental, se exigir lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado.

    Ou seja, a esta luz, a iniciativa legislativa em causa só será organicamente legítima quando revista essa forma ou, quando muito, se for precedida e autorizada, nos termos impostos pelo n.º 1 do artigo 17.º da Lei da Protecção de Dados, por lei especial, que, pelas mesmas razões, deve entender-se como significando lei parlamentar ou decreto-lei autorizado.

  2. Mesmo que se pretenda não integrarem o conceito de vida privada os dados pessoais sobre o estado de saúde no domínio das doenças do foro oncológico, está-se, ainda assim, perante legislação sobre direitos, liberdades e garantias.

    Antes de mais, porque na delimitação conceitual subjacente surge, inevitavelmente, uma zona de fronteiras fluidas, em que se acentua a premência do respeito pelas garantias constitucionais de intervenção legislativa.

    Na verdade, observa-se, 'quando os dados em questão são liminarmente subsumíveis aos conceitos do artigo 35.º, n.º 3, da Constituição (por exemplo, convicções políticas, fé religiosa), a própria lei ordinária é até dispensável, pois o problema está claramente decidido na Constituição. É, pelo contrário, nos `casos difíceis', nas zonas de fronteira, que a intervenção do legislador é capital e daí que ela se deva revestir de todas as garantias constitucionais, incluindo a da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República do artigo 168.º, n.º 1, alínea b)'.

    Depois, a transmissão dos dados recolhidos, tal como se prevê no diploma (artigos 3.º, 5.º, 6.º e 7.º), coloca necessariamente em causa a garantia prevista no n.º 2 do artigo 35.º da CR, que proíbe o acesso por terceiros aos dados.

    A lei que autoriza o tratamento automatizado deste tipo de dados 'tem necessariamente que considerar e decidir a relevante questão de saber em que medida os técnicos informáticos e o pessoal administrativo e médico que integram os quadros de serviço que não os da instituição de saúde com que o doente se relaciona podem ou não ser considerados terceiros para efeitos de acesso aos dados e a que tipo de dados e, consequentemente, para efeitos da observância da garantia do artigo 35.º, n.º 2, da Constituição'.

    Por outro lado, o decreto, na ausência de outra lei especial sobre protecção de dados referentes ao estado de saúde, tem de ser considerado a lei que define as condições de acesso, constituição e utilização por entidades públicas, pelo que deve observar também a garantia do n.º 4 do artigo 35.º da CR.

    Também é este diploma que define as condições concretas de como se garante o direito ao conhecimento de dados e à sua eventual rectificação a pedido dos próprios interessados (n. 1 do artigo 35.º), o que faz nos termos do seu artigo 10.º Por último, 'constituindo o direito à autodeterminação informacional uma concretização especial, no domínio da informática, do direito mais geral à reserva de intimidade da vida privada do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, a legislação sobre ficheiros automatizados no domínio da saúde sempre se relacionará, directa ou indirectamente, com esse direito, liberdade e garantia mais geral'.

  3. Não obstante, mesmo que se conclua no sentido de que o tratamento automatizado dos dados pessoais de saúde do foro oncológico não integra o domínio protegido pelas normas constitucionais dos artigos 35.º e 26.º, n.º 1, sempre seria de considerar que respeita a direitos, liberdades e garantias fundamentais, de criação legal.

    Tendo presente não se esgotar o catálogo dos direitos fundamentais no texto constitucional, pondera-se que 'da proibição legal de tratamento automatizado de dados referentes ao estado de saúde [artigo 11.º, n.º 1, alínea b), da Lei da Protecção de Dados] e da possibilidade legalmente consagrada do seu tratamento excepcional sob reserva de lei especial (artigo 11.º, n.º 3, e artigo 17.º, n.º 1, da mesma lei) decorrem...

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