Acórdão nº 864/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 864/2022

Processo n.º 746/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Beja — Juízo de Competência Genérica de Moura, o Ministério Público interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal em 12 de abril de 2022.

2. No âmbito do inquérito nos presentes autos, foi proferido despacho, a 30 de novembro de 2021, admitindo a intervenção do ofendido como assistente (fls. 361).

Deduzida a acusação, foram os autos distribuídos, para julgamento, à mesma Juíza de Direito que havia admitido a constituição de assistente. Nesta sequência, foi proferido despacho, ora recorrido (fls. 477-487v), que recusou aplicar a norma constante do artigo 40.º, n. 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP):

«Atenta a ausência de coerência interna no regime enunciado que, como referido atinge, pela ausência de critério razoável o princípio da tutela jurisdicional efetiva, artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da igualdade material, artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (sendo impossível discernir medidas que se justifiquem para além das que já se mostravam em vigor, com fundamentação conhecida e séria), decide-se desaplicar a norma contida no enunciado normativo do artigo 40.º do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, julgando-se a mesma inconstitucional, com exceção da parte em que reproduz o regime anteriormente em vigor: "Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: a ) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º; b) Presidido a debate instrutório, c) Participado cm julgamento anterior; d ) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior. e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta».

Em consequência, decidiu o tribunal a quo que «inexiste qualquer impedimento para a tramitação dos presentes autos pela Juiz Signatária deste Juízo de Competência Genérica de Moura, o que se declara».

3. O Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls. 496v).

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações pugnando pela improcedência do recurso, que concluiu nos seguintes termos:

«V. CONCLUSÕES

1. A Senhora juíza de direito a quo fundamenta a inconstitucionalidade da norma contida no enunciado normativo conjugado e resultante dos artigos 40.º, n.º 1, al. a), na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, 268.º, n.º 1, al. f) e 68.º, n.ºs 3, al. b) e 4 todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que o/a juiz/a que admite a intervenção de assistente nos autos, em fase de inquérito, fica, por esse facto, impedido/a de intervir em julgamento, na violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e do princípio da igualdade material.

2. Invoca, em seguida, que o regime que o art. 40.º do CPP passou a prever «(…) não foi aprovado no seio de uma organização judiciária uniforme no país, onde todas as Comarcas disponham de meios para fazer face à proliferação de impedimentos de juízes que esta solução origina.

Com efeito, tal regime deve ser valorado em conjugação com outras normas em vigor no ordenamento jurídico, que decorrem de igual fonte normativa, dotadas de igual valor jurídico, designadamente as da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08) e do Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Decreto-lei n.º 49/2014, de 27-03)».

3. Aponta, ainda, a irracionalidade e distorção sistémica que a solução de alteração legislativa implica na Comarca de Beja.

4. Por fim, imputa à novel solução normativa a afronta ao princípio da igualdade.

5. Como apontamento preambular às nossas alegações, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, apesar da entretanto ocorrida alteração do preceito do art. 40.º do CPP pela Lei n.º 12/2022, de 01-08, subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações processuais resultantes da sua (des)aplicação, que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021.

6. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional.

7. A evolução do conteúdo do art. 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual» tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, PEDRO SOARES DE ALBERGARIA, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

8. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contra-ciclo” com anterior tendência.

9. O seu recorte atual, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, emerge a partir da Proposta de Lei 90/XIV, do Governo, e do Projeto de Lei 876/XIV (do PSD).

10. Na redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o art. 40.º do CPP ficou com a seguinte redação (em itálico as alterações relativamente ao regime pretérito):

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.

11. Por efeito da Lei n.º 13/2022, de 01-08, o preceito passou a assumir a seguinte redação:

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;

b) Presidido a debate instrutório;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.

12. O direito à tutela jurisdicional efetiva, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (e densificado no seu n.º 4), consagra, essencialmente, o direito de os particulares recorrerem aos tribunais a fim de obterem, em prazo razoável, uma decisão judicial, com força de caso julgado, que incida sobre as suas pretensões, desde que apresentadas de forma procedimentalmente adequada e, bem assim, o direito a obter a execução de tais decisões.

13. Encontramo-nos perante um complexo de direitos, constitucionalmente sustentados, garantes, individual e institucionalmente, da obtenção, por parte dos tribunais, da adequada proteção jurisdicional das suas legítimas pretensões. Ou seja, o direito à tutela jurisdicional efetiva garante que, numa ótica instrumental, processual e procedimental, se encontra constitucionalmente assegurada aos particulares uma adequada resposta jurisdicional às suas legítimas pretensões, regularmente suscitadas, independentemente da sua valia substantiva.

14. No caso que agora nos ocupa, não se vislumbra que a alteração legislativa precipitada na Lei n.º 94/2021, ao art. 40.º do CPP, se configure, em qualquer medida, como uma violação dessas garantias de acesso aos tribunais a fim de obter uma decisão jurisdicional incidente sobre pretensões processualmente deduzidas, designadamente quanto à admissão de intervenientes como assistentes, em fase de...

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