Acórdão nº 710/21 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Setembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução17 de Setembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 710/2021

Processo n.º 461/2021

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, em que é recorrente A., sendo recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 9 de março de 2021.

2. Pela Decisão Sumária n.º 428/2021, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:

«5. O presente recurso de constitucionalidade incide sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 9 de março de 2021 que julgou o recurso interposto do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal de 1.ª instância, negando-lhe provimento.

São três as normas cuja constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciadas:

i. «[N]ormas resultantes do artigo 276.° do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de não constituir nulidade nos termos do artigo 119.°, n.° 1 al. b) do Código de Processo Penal, a ultrapassagem dos prazos de inquérito, sem declaração de especial complexidade do processo e quando todos os factos estão à disposição da investigação ab initio»;

ii. «[N]orma resultante do artigo 625.° do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de permitir que um arguido seja julgado em dois processos em que os crimes pelos quais é acusado têm como bem jurídico a "realização da justiça", tendo por base os mesmos factos e apenas diferente enquadramento jurídico» e

iii. «[N]ormas resultantes do artigo 110.° do Código Penal vigente, quando interpretadas no sentido permitir a imposição a um cidadão da perda de vantagens que não recebeu, e que não se traduziram em ganhos líquidos para ele ou terceiros ou prejuízo efetivo para outrem, possibilitando-se assim a privação do domínio do património do agente, de forma injustificada e desproporcionada».

Apreciemos a admissibilidade do recurso quanto a cada uma das normas enunciadas.

6. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Suscitação que deve ter ocorrido de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigo 72.º, n.º 2, da LTC).

Nos presentes autos, não pode dar-se como verificado tal requisito de suscitação prévia e processualmente adequada no que concerne à primeira norma.

Com efeito, não existe coincidência entre a norma objeto do recurso, tal como definida no requerimento de interposição, e aquela cuja inconstitucionalidade foi suscitada perante o Tribunal da Relação de Évora. A falta de coincidência tanto se verifica quanto ao conteúdo da norma, como quanto aos preceitos legais de onde é extraída. A norma objeto do recurso centra-se na circunstância de a ultrapassagem dos prazos de inquérito, tal como definidos nos diversos números do artigo 276.º do Código de Processo Penal, não ser processualmente tratada como uma nulidade insanável, designadamente por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal.

Já perante o Tribunal da Relação de Évora – momento processualmente idóneo para a satisfação do ónus previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC –, o recorrente não reconduziu a norma em causa ao artigo 119.º, alínea b), do Código de Processo Penal, mas tão-só ao artigo 276.º do Código de Processo Penal, nem configurou a questão como um problema de nulidade insanável. O arguido não imputou aí nenhuma inconstitucionalidade à norma do artigo 276.º do Código de Processo Penal, que define os prazos de duração máxima do inquérito. Perante o Tribunal da Relação, o que invocou foi a violação dessa norma, sendo essa violação, traduzida na ultrapassagem dos prazos aí definidos, o que implica mediatamente – no seu entender - a violação do artigo 20.º, n.os 4 e 5, da Constituição. Em suma, imputou a inconstitucionalidade à própria decisão judicial e não a norma que a mesma tenha aplicado como ratio decidendi.

Tal obsta ao conhecimento do objeto do recurso.

7. As mesmas razões justificam idêntica conclusão no que concerne à segunda norma.

Nas conclusões M a U da motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, onde tratou da questão relacionada com a norma aqui em análise, o recorrente não suscitou a inconstitucionalidade de norma extraível do artigo 625.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal. Antes invocou que se verificava a exceção do caso julgado, pelo que o seu não decretamento pelo Tribunal se traduzia, entre o mais, na violação do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição. Por outras palavras, não estava em causa a violação da Constituição pela lei, mas a violação da lei pelo Tribunal. Ora, como se escreveu no Acórdão n.º 695/2016, «[t]odo o sistema português de controlo da constitucionalidade normativa assenta na ideia de que a jurisdição constitucional deve ser o juiz das normas e não o juiz dos juízes. O papel do Tribunal Constitucional na arquitetura da nossa democracia constitucional é o de controlar a atuação do legislador e dos seus sucedâneos; os erros judiciais são corrigidos através do regime de recursos próprio da ordem jurisdicional a que as decisões pertencem».

O recurso não pode, pois, ser admitido quanto a esta norma.

8. Vejamos finalmente a terceira norma.

O recorrente faz extrair o enunciado normativo cuja constitucionalidade pretende ver apreciada do artigo 110.º do Código Penal, sem especificar a que número ou números se reporta. Contudo, a leitura da decisão recorrida, na parte em que trata da questão da perda de produtos e vantagens, mostra que apenas foi aplicada, como ratio decidendi, a norma do artigo 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal.

A necessidade de precisar a norma objecto do recurso torna-se particularmente evidente quando o preceito que lhe serve de base legal, logo pela sua redação, contém vários segmentos, eventualmente passíveis de respostas distintas por parte deste Tribunal (neste sentido, v. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 116/2002). É o que sucede, manifestamente, no caso do artigo 110.º do Código Penal. Tal significa que o recorrente não suscitou de forma processualmente adequada a questão de constitucionalidade.

Em todo o caso, outra razão concorreria para o mesmo desfecho.

Constitui requisito do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é sindicada pelo recorrente.

Para justificar a condenação do arguido a pagar ao Estado a quantia de 22.095,40 euros, o Tribunal recorrido não interpretou o artigo 110.º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal, com o sentido de que tal condenação pode ser decretada mesmo quando a vantagem não tenha sido recebida pelo agente ou por terceiro, ou por não se traduzir em ganhos líquidos em prejuízo de outrem. Ao invés, o Tribunal entendeu que, por ação do arguido, os valores em causa foram pagos à empresa «B.» em momento em que não eram devidos, dado que os trabalhos de construção a que se referiam não tinham sido realizados. Assim, não aplicou nenhuma norma, extraível artigo 110.º do Código Penal, nos termos da qual pode ser decretada a perda de vantagem líquida não recebida pelo agente ou terceiro, em prejuízo de outrem. Ora, ao incorporar na norma cuja constitucionalidade pretende ver apreciada um elemento que o Tribunal a quo não acolheu, o recorrente afastou-se irremediavelmente da ratio decidendi.

A não verificação deste requisito do recurso de constitucionalidade obsta a que este Tribunal possa conhecer do objeto do mesmo, justificando-se, dessa forma, a prolação da presente decisão sumária (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).»

3. De tal Decisão Sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, o que faz nos seguintes termos:

«A., recorrente nos autos acima e à margem identificados, notificado da decisão sumária proferida pelo Exmo. Conselheiro Relator que decidiu, nos termos do artigo 78.°-A, n.° 1 da Lei do Tribunal Constitucional, não conhecer do objeto do recurso interposto, vem nos termos do n.° 3 do referido artigo, reclamar para a conferência, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:

1. O recurso interposto para este Douto Tribunal teve como fundamento a alínea b) do n.° 1 do art.º 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, isto é, uma decisão judicial que aplicou normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora reclamante durante o processo.

2. Durante o processo e no recurso interposto, o ora reclamante suscitou a inconstitucionalidade das normas resultantes do artigo 276.° do Código do Processo Penal (doravante, CPP) quando interpretada no sentido de não constituir nulidade nos termos do art.º 119.º, n.º 1, al. b) do CPP a ultrapassagem dos prazos de inquérito, sem declaração de especial complexidade do processo e quando todos os factos estão à disposição da investigação ab initio;

3. A inconstitucionalidade da norma resultante do artigo 625.° do Código do Processo Civil, ex vi do art.º 4.° do CPP quando...

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