Acórdão nº 522/22 de Tribunal Constitucional (Port, 14 de Julho de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução14 de Julho de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 522/2022

Processo n.º 591/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam, em conferência, na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 4 de janeiro (Lei do Tribunal Constitucional [LTC]).

2. Através da Decisão Sumária n.º 388/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso, com a seguinte fundamentação:

«6. O recorrente identifica expressamente as decisões de que recorre — «doutas decisões recorridas, proferidas pelo Supremo Tribunal de Justiça» —, tendo, de resto, apresentado o recurso junto do tribunal que proferiu tais decisões, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 76.º da LTC. Nenhuma dúvida há, pois, de que o presente recurso vem interposto, simultaneamente, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 7 de abril de 2022 e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 5 de maio de 2022.

O recorrente identifica cinco questões de constitucionalidade, sendo as quatro primeiras dirigidas a normas extraídas do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto; e a última à norma do artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, segundo a qual «Pode haver execução de mandado de detenção europeu, fundado na condenação por factos anteriores a entrada em vigor da lei 35/2015, sem exigência de qualquer garantia adicional a conceder pelo Estado membro de emissão sobre o estatuto coactivo do arguido até à ocorrência do trânsito em julgado da condenação e início de execução da pena, para efeitos de cumprimento de uma pena privativa da liberdade quando tal condenação não tenha transitado em julgado, por ser passível de recurso em virtude de condenação à revelia e sem notificação prévia de tal teor decisório».

7. As questões de constitucionalidade dirigidas ao n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, não podem ser conhecidas por este Tribunal, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC, por não ter o tribunal a quo aplicado, enquanto ratio decidendi de qualquer das decisões recorridas, as normas enunciadas pelo recorrente. Não existe correspondência entre as normas que o recorrente quer ver sindicadas e aquelas que foram efetivamente aplicadas nas decisões recorridas, a implicar que — atenta a instrumentalidade dos recursos de constitucionalidade — os acórdãos ora impugnados sempre se mantivessem intocados ainda que fosse julgada a inconstitucionalidade de alguma das normas reportadas ao n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

Com efeito, o acórdão do STJ, datado de 7 de abril de 2022, expressamente afastou a aplicação, como ratio decidendi, das normas enunciadas pelo recorrente reportadas ao n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, havendo ao invés suportado a decisão no disposto no artigo 12.º-A desta Lei (fls. 291):

“as inconstitucionalidades alegadas referem-se sempre a interpretações do art. 1.º n.º 1, da LMDE, segundo o qual "O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade."

Ora, a execução deste MDE, depois de o arguido ter sido notificado, julgado na ausência, sem que, todavia, ainda não tenha sido notificado da decisão e sem que, por isso mesmo, a decisão tenha transitado em julgado, teve por base a aplicação do disposto no art. 12.º- A. E porque a decisão teve por base o disposto no art. 12.º-A, e não o disposto no art. 1.º/1, relativamente ao qual são arguidas as interpretações consideradas inconstitucionais pelo recorrente, fica prejudicado o seu conhecimento”.

Naquele aresto considerou-se que «o presente MDE corresponde ao disposto no art. 12.º-A, n.º 1, al. d), da LMDE» (fls. 188), coisa que o recorrente reconhece expressamente na reclamação apresentada daquele acórdão, tendo declarado «veja-se ainda que o alicerce para o deferimento do mandado de detenção europeu mostra-se centrado no art. 12.º-A da LMDE» (fls. 199). De facto, o acórdão do STJ de 7 de abril de 2022 em momento algum aplicou qualquer norma desvelada do n.º 1 do artigo 1.º, tendo fundamentado a sua decisão exclusivamente no regime do artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto.

Do mesmo passo, o acórdão de 5 de maio de 2022 não fez qualquer aplicação do n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, tendo-se limitado a concluir pela inexistência de contradição na fundamentação da decisão então reclamada (fls. 219). Não há qualquer menção, sequer indireta, a uma norma jurídica extraída da disposição sindicada, que tenha servido de ratio decidendi desta decisão.

Tal implica a impossibilidade de conhecimento das quatro primeiras questões de constitucionalidade enunciadas pelo recorrente, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC, já que um eventual julgamento de inconstitucionalidade sempre se revelaria inútil, por não gerar a modificação de nenhuma das decisões ora recorridas (n.º 2 do artigo 80.º da LTC).

8. Tampouco se preenchem os pressupostos de cognição da quinta questão de constitucionalidade — a norma extraída do artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, segundo a qual «Pode haver execução de mandado de detenção europeu, fundado na condenação por factos anteriores à entrada em vigor da lei 35/2015, sem exigência de qualquer garantia adicional a conceder pelo Estado membro de emissão sobre o estatuto coactivo do arguido até à ocorrência do trânsito em julgado da condenação e início de execução da pena, para efeitos de cumprimento de uma pena privativa da liberdade quando tal condenação não tenha transitado em julgado, por ser passível de recurso em virtude de condenação à revelia e sem notificação prévia de tal teor decisório».

8.1. No que respeita ao recurso interposto do acórdão do STJ, proferido em 7 de abril de 2022, carece o recorrente de legitimidade por não ter suscitado perante o tribunal a quo a questão de constitucionalidade que agora enuncia «em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC).

Com efeito, percorrendo a argumentação apresentada na motivação apresentada no recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, verifica-se que o recorrente não enunciou qualquer sentido normativo, contido no artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que reputasse inconstitucional e cuja aplicação devesse ser recusada por aquele tribunal. Ao invés, suscitou várias questões de constitucionalidade imputadas ao n.º 1 do artigo 1.º daquela Lei (fls. 140-141) e, no que se refere ao disposto no artigo 12.º-A, limitou-se a sustentar que «do mandado de detenção europeu não consta o preenchimento cabal do teor de qualquer das alíneas do n.º 1 do art. 12.º-A n.º 1 da Lei 65/2003, havendo assim fundamento para a recusa da execução do mandado» (fls. 138), bem como que «não se mostra a presente situação abarcada pela previsão legal do mandado de detenção europeu, pelo que, não o estando, deverá o mesmo ser julgado improcedente» (fls. 138).

Tal não permite dar por observado o ónus de suscitação prévia e adequada da questão de constitucionalidade. Por força do disposto no n.º 2 do artigo 72.º da LTC, constitui pressuposto de admissibilidade dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do respetivo artigo 70.º que a questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de interposição do recurso haja sido suscitada «durante o processo» e «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC). Para além de vincular o recorrente à antecipação da questão de constitucionalidade ulteriormente enunciada no requerimento de interposição do recurso, exigindo-lhe que a defina antes de esgotado o poder jurisdicional da instância recorrida, o requisito da suscitação atempada tem uma evidente dimensão formal, impondo ao recorrente um ónus de delimitação e especificação, perante o tribunal a quo, do objeto do recurso. Conforme recorrentemente notado na jurisprudência deste Tribunal, quando esteja em causa a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa norma jurídica, a suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade pressupõe que «esse sentido (dimensão normativa)» seja «enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição» (cfr. Acórdão n.º 367/94).

Ora, compulsados os autos, não se pode considerar previamente suscitada, perante o tribunal que proferiu o acórdão aqui recorrido, qualquer questão de constitucionalidade normativa arrimada no artigo 12.º-A da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, única suscetível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade. Verdadeiramente, ao sustentar perante o tribunal recorrido não se preencherem os pressupostos de aplicação do regime contido naquela disposição, o recorrente dirige uma censura à própria decisão então impugnada. Trata-se, assim, de uma discussão quanto à bondade da interpretação seguida na aplicação do direito infraconstitucional, não...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT