Acórdão nº 116/02 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Março de 2002

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução13 de Março de 2002
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 116/02

Processo n.º 62/00

  1. Secção

Relator - Paulo Mota Pinto

(Cons. Fernanda Palma)

Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:

  1. Relatório

    A intentou uma acção de condenação contra o Estado, com o fim de ser ressarcida dos danos resultantes da situação de prisão preventiva que sofreu no âmbito de processo criminal em que veio a ser absolvida, por decisão transitada em julgado. A acção de indemnização foi julgada improcedente pelo Tribunal Judicial de Gondomar por sentença de 19 de Fevereiro de 1999, na qual se concluiu não ter "ocorrido o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de que dependeu a aplicação da prisão preventiva à autora" nem "ter sido manifestamente ilegal a prisão preventiva suportada pela autora", pelo que se não verificavam os pressupostos de que dependia a existência de um direito de indemnização.

    Inconformada, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, no qual sustentou que a sentença recorrida resulta "de uma muito errada interpretação da Constituição e da Lei". Depois de, invocando apoios doutrinais, considerar demonstrada a "irrazoabilidade da sentença sub judicio", a recorrente disse, sobre o artigo 225º do Código de Processo Penal, nesse recurso:

    "(...) jamais constituirá obstáculo a este entendimento o disposto na Constituição, artº 27º, n.º 5, no tocante ao fumus de restrição ao dever de indemnização ‘nos termos que a lei estabelecer’; e à também apenas aparente restrição vertida no artº 225 do Código de Processo Penal.

    É que os preceitos respeitantes a direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis, e vinculam tanto os administrados como o recorrido – artº 18º da Constituição.

    Pode a lei – e porventura deve a lei – estabelecer em abstracto o método e disciplina de indemnizar por banda do Estado, em caso de prisão preventiva ilegal ou injustificada. Mas nunca restringindo o direito, como intoleravelmente pretenderia, de acordo com esta interpretação, o legislador ordinário autor daquele artº 225º.

    (...)"

    E, ainda quanto a tal artigo, disse, nas conclusões, que:

    "(...)

    1. o artº 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente;

    2. ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo;

    3. se for decidido de modo diverso – e sem prescindir deste entendimento – a interpretação feita pelo Mº Juiz a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição."

      Por Acórdão de 8 de Julho de 1999, o Tribunal da Relação do Porto, confirmou o decidido na 1ª instância, com fundamento, no que à questão de constitucionalidade diz respeito, em que o artigo 225º do Código de Processo Penal não é de considerar inconstitucional, em face do disposto no artigo 27º, n.º 5, da Constituição, resultando, antes, do próprio preceito constitucional a consagração legislativa prevista no artigo 225º do Código de Processo Penal.

      Com a "mais frontal e veemente discordância relativamente ao decidido", a demandante interpôs então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, dizendo, designadamente, nas alegações:

      "É indiscutível há décadas que o Estado é obrigado a indemnizar por actos administrativos mesmo que legais e materialmente lícitos (...)

      Nada isenta de igual dever se estiverem em causa actos jurisdicionais, ainda que – como é o caso – possam ser apenas formalmente lícitos.

      Apenas formalmente, concede-se; porquanto se é certo que eventualmente seja possível concluir que in casu o acto que decidiu a prisão será lícito, num ponto de vista meramente formal – mas sem conceder, sublinha-se – não o é, seguramente, num ponto de vista material.

      Esta é a resposta única que resulta da interpretação conforme a Constituição, que tem em conta a unidade do sistema jurídico, as regras do artº 9º do Código Civil e ‘a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’ (...)."

      E nas conclusões destas alegações disse:

      "a) a recorrente – absolvida a final – foi objecto de privação prolongada de liberdade, durante mais de dois anos, o que configura ofensa grave a um seu direito fundamental, expressa e solenemente consagrado em sede constitucional;

    4. assim sendo, o enclausuramento que sofreu – e que lhe causou danos patrimoniais e pessoais gravíssimos – resultou de actividade materialmente ilícita do recorrido;

    5. mesmo que assim se não entenda, resulta de actividade apenas formalmente lícita (!) do recorrido, que igualmente é fonte do dever de indemnizar;

    6. o Tribunal a quo considera que a prisão não foi injustificada, ou manifestamente ilegal;

    7. a recorrente entende que a sua prisão foi injustificada, e manifestamente ilegal;

    8. os prejuízos advenientes foram fatalmente anómalos e de particular gravidade – e tratando-se, como se trata, de privação de liberdade, nem outra conclusão seria possível extrair;

    9. o artº 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente;

    10. ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo;

    11. esta interpretação é a única conforme à Constituição da República, harmónica com a unidade do sistema jurídico – desde logo considerando-se o legislado pelo Decº Lei n.º 48051 – e condizente com os ditames do artº 9º do Código Civil, bem como do seu artº 10º, ‘segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’;

    12. se for decidido de modo diverso – e sem prescindir deste entendimento - a interpretação feita pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artº 27º, conjugado com o artº 18º, da Constituição."

      Por Acórdão de 6 de Janeiro de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou o decidido pelas instâncias, considerando, em conclusão, que "o artigo 225º, do Código de Processo Penal de 1987, é a consagração legislativa correcta do princípio constitucional estabelecido no n.º 5 do artigo 27, da Constituição da República Portuguesa", e que, "nos termos do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987, está prevista a indemnização por parte do Estado por privação da liberdade em dois casos: por detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal e por prisão preventiva legal, mas injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, exigindo-se prejuízos anómalos e de particular gravidade, sem concurso de conduta dolosa ou negligente do arguido para a formação do erro."

      Deste acórdão foi interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na "inconstitucionalidade, discutida nos autos", do artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987, por violação do artigo 27º, n.º 5, da Constituição.

      Admitido o recurso, e notificada a recorrente, pela primitiva relatora, nos termos do artigo 75º-A, da Lei do Tribunal Constitucional, para indicar, querendo a peça processual onde suscitou, durante o processo e de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 225º do Código de Processo Penal, veio aquela indicar "as alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação do Porto e as alegações de recurso dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça".

      Ordenada então a produção de alegações, a recorrente concluiu-as da seguinte forma:

      "a) a recorrente - absolvida a final - foi objecto de privação prolongada de liberdade, durante mais de dois anos, o que configura ofensa grave a um seu direito fundamental, expressa e solenemente consagrado em sede constitucional;

    13. assim sendo, o enclausuramento que sofreu - e que lhe causou danos patrimoniais e pessoais gravíssimos - resultou de actividade materialmente ilícita do recorrido;

    14. mesmo que assim se não entenda, resultou de actividade apenas formalmente lícita (!) do recorrido, que igualmente é fonte do dever de indemnizar;

    15. o Tribunal a quo considera que a prisão não foi injustificada, ou manifestamente ilegal;

    16. a recorrente entende que a sua prisão foi injustificada, e manifestamente ilegal;

    17. os prejuízos advenientes foram fatalmente anómalos e de particular gravidade - tratando-se, como se trata, de privação de liberdade, nem outra conclusão seria possível extrair;

    18. o artigo 225º do Código de Processo Penal impõe o ressarcimento pelo recorrido dos danos em causa que infligiu à recorrente;

    19. ocorrem in casu todos os pressupostos de aplicação daquele normativo;

    20. esta interpretação é a única conforme à Constituição da República, harmónica com a unidade do sistema jurídico - desde logo considerando-se o legislado pelo Decreto-Lei n.º 48.051 - e condizente com os ditames do artigo 9º do Código Civil, bem como do seu artigo 10º, ‘segundo a norma que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema’;

    21. tendo decidido de modo diverso, a interpretação feita pelo Tribunal a quo é inconstitucional por violação além do mais do disposto no artigo 27º, conjugado com o artigo 18º, da Constituição."

      Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público, por sua vez, concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:

      "1 - Não compete a este Tribunal decidir acerca da correcção da subsunção, realizada pelos Tribunais Judiciais, da matéria de facto apurada pelas instâncias à norma constante do artigo 225º do Código de Processo Penal - determinando se ocorrem in casu os pressupostos de aplicação de tal normativo, sindicando se a prisão preventiva sofrida pela recorrente se configura como ‘injustificada’ ou ‘manifestamente ilegal’.

      2 - Tendo a recorrente fundado a sua pretensão indemnizatória exclusivamente na imputação dos danos sofridos àilegalidade manifesta da prisão, decorrente - na sua óptica - da circunstância de ter sido absolvida em julgamento - sem curar de, a nível subsidiário, alegar outros factos em que pudesse assentar o nexo de imputação ao Estado - a título objectivo ou subjectivo...

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