Acórdão nº 266/20.0PGLRS.L1-9 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 15 de Abril de 2021

Magistrado ResponsávelGUILHERME CASTANHEIRA
Data da Resolução15 de Abril de 2021
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Decisão Texto Parcial:


Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO: No, aqui redistribuído em 2021.04.06, nuipc 266/20.0PGLRS.L1, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Loures, Instância Local, Juízo de Pequena Criminalidade - J2, sob acusação do Ministério Público, foram, em processo sumário, submetidos a julgamento, os arguidos: - AA; (nascido em Portugal, ………………………….. Pontinha) - BB; (nascido no Brasil, ………………… Pontinha) - CC (nascido em Portugal, …………………………… Pontinha).

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença pela qual se decidiu absolver “os arguidos AA,BB e CC da prática de um crime de desobediência pelo qual vinham acusados”, i.e, “um crime de desobediência agravada por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º e 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, todos do Decreto 2-C/2020, de 17/4, com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, e com o art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, e ainda art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2000, de 17/4”.

* Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões: “ a) É o presente recurso interposto da douta sentença que absolveu os arguidos da prática de um crime um crime de desobediência agravado, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al. a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º, 46º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 7, todos do Decreto 2-C/2020, de 17/4, com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, com o art.º 6º, n.ºs 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7, e com o art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17/4, por entender, grosso modo, que a deficiente redacção do Decreto 2C/2020, de 2/4, não permite ao julgador ter uma percepção clara e livre de contradições das condutas que são criminalmente punidas, bem como de quais os poderes que as Forças de Segurança têm para impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, decorrente do art.º 5º, do Decreto 2-C/2020.

  1. A sentença proferida padece de nulidade prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, pois, entendendo a Mm.ª Juíza a quo que não estavam preenchidos os elementos objectivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por referência à violação do art.º 5º do Decreto 2-C/2020, de 17/4, foram ignorados as demais normas e diplomas em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório.

  2. Não se podia ignorar, na sentença recorrida, que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do Decreto 2-C/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.º 5º, pois que o mesmo surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente, onde se destaca a Lei 44/86, de 30/9, a qual não foi sequer considerada, bem como o art.º 46º, n.º 7, do mesmo Decreto 2-C/20202, o art.º 5º da Resolução da Assembleia da República 23-A/2020, de 17/4, não sendo sequer aflorado se a factualidade dada como provada podia integrar a prática de um crime de desobediência previsto e punido nos termos do art.º 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal, como constava igualmente da acusação.

  3. Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2-B/2020 e 2-C/2020, seu art.º 5º, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.º 46º do Decreto 2-C/2020.

  4. O facto de estar na via pública à conversa com outros indivíduos, em situação de convívio social, não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado os arguidos a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. u).

  5. As forças de segurança têm poder para, legitimamente, ordenar aos cidadãos em violação do dever geral de recolhimento domiciliário que retornem às suas residências – art.º 46º, n.º 1, al. c).

  6. A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-C/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.º 46º, n.º 7.

  7. Sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário.

  8. No caso concreto, resultou provado que no dia 25 de Abril de 2020 os arguidos foram interceptados na via pública, em situação de convívio social com outros indivíduos, mas que já no dia 31 de Março (no que se refere aos arguidos BB e CC) e no dia 19 de Abril(no que se refere ao arguido AA) os mesmos foram interceptados na via pública por Agentes da PSP em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio, razão pela qual foram devidamente notificados por estes Agentes de que não podiam permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência, pois caso não o fizessem ou voltassem a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometiam um crime de desobediência.

  9. Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, a consequência quando voltem a incumprir tal dever não pode deixar de ser o cometimento de um crime de desobediência, tanto mais que, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já o mesmo havia sido advertido de que, em caso de futura violação, cometeria o crime de desobediência.

  10. - Não se pode conceber que não haja qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, e que tal crime esteja reservado para a violação do disposto no art.º 3º do Decreto 2-C/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos artº.s 6º (limitações específicas para o Concelho de Ovar), 9º (encerramento de instalações e estabelecimentos), 10º (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 11º (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.º 46º, n.º 1, al. d), do art.º 46º do Decreto 2-C/2020.

  11. Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, comportando restrições de direitos liberdades e garantias, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade.

  12. Ficou bastante restringido o direito de deslocação dos cidadãos, bem como o direito de resistência, ficando impedidos os actos de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência.

  13. O regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de Emergência teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, que dispões, no seu art.º 7, que “a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência” o) A revisão introduzida na Lei 44/86 pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, o art.º 7º, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político-administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos.

  14. O Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril, que renovou o Estado de Emergência, mantendo a restrição ao direito de deslocação e fixação, comportou uma novidade que não poderá deixar de ter consequências a título penal, passando a incluir um art.º 5º, em que expressamente se determina que fica impedido todo e qualquer acto de resistência activa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência.

  15. E este art.º 5º foi mantido na redacção do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17/4, e na Resolução da Assembleia da República n.º 23A/2020, de 17/4.

  16. Neste contexto normativo não nos parece defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tenha qualquer consequência penal, que não comporte a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”.

  17. Tais autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que...

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