Acórdão nº 779/15.5T8PTM.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Julho de 2018

Magistrado ResponsávelSOUSA LAMEIRA
Data da Resolução12 de Julho de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO l.

AA e BB - Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda. propuseram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra CC e DD, casados entre si, alegando que emprestaram ao réu CC a quantia total de € 84.000 e que este último nunca a restituiu. Pretendem, pois, a restituição do capital em dívida e o pagamento dos juros de mora vencidos, no montante de € 23.581,59.

Concluem pedindo que seja o réu Júlio condenado a pagar-lhes a quantia de € 107.581,59.

  1. Os Réus contestaram, alegando resumidamente: A ré DD impugnou a matéria de facto alegada pelos autores, alegou que se encontra separada de pessoas e bens do réu CC e arguiu a nulidade, por inobservância da forma legal, dos hipotéticos contratos de mútuo.

    Concluiu que deverá ser absolvida do pedido.

    O réu CC alegou ter recebido a quantia total de € 80.500, não a título de empréstimo, mas como contrapartida por serviços que prestou, ao longo de cerca de um ano, à autora BB, tendo em vista o pagamento, a esta, por parte da sociedade EE, SA, de uma indemnização pela denúncia de um contrato de cessão de exploração. A EE, SA aceitou pagar uma indemnização de € 250.000, acrescida de IVA, à autora BB, correspondendo a referida quantia de € 80.500 a cerca de um terço desse valor, conforme acordado. Alegou ainda que se encontra separado de pessoas e bens da ré DD desde 24.02.2014, embora a separação de facto remonte a 2005, e arguiu a nulidade, por inobservância da forma legal, dos hipotéticos contratos de mútuo.

    Concluiu que deverá ser absolvido do pedido.

  2. Os autores replicaram, negando que as quantias que entregaram ao réu CC constituíssem uma contrapartida por qualquer serviço por este prestado e reafirmando a versão factual alegada na petição inicial.

    Concluem como na p. i.

  3. Elaborou-se despacho saneador no qual se definiu o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova.

    Observado o legal formalismo, realizou-se a audiência final.

    Posteriormente ao encerramento da audiência final, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Da sentença Ocorre que, na elaboração da mesma, o Tribunal enquadrou de forma diferente da alegada a factualidade dada por provada.

    No processo de elaboração da sentença, conclui-se que: - Ficou acordado entre os autores e o réu que, pela ajuda ou colaboração prestada, a “BB” pagaria ao réu um terço do valor da indemnização que a “EE” viesse a pagar (art. 21.º da contestação do réu) - A “EE” aceitou pagar mas, por razões que não se deram por provadas, não pagou, propondo até acção judicial na qual a “BB” foi condenada a pagar-lhe, além do mais, € 97 700 e estando pendente acção judicial da “BB” contra a “EE”; - O réu CC já beneficiou dos montantes acordados.

    O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art. 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. No entanto, deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – art. 3.º, n.º 3, do mesmo código. Assim, com vista a ser cumprido o citado princípio, notifique as partes de que o enquadramento jurídico da factualidade dada por provada será diferente da alegada e se inscreverá no domínio do enriquecimento sem causa.

    Notifique deste despacho o próprio réu.

    Nada vindo, conclua de novo.

    ” Ambas as partes se pronunciaram na sequência deste despacho. Os autores concluíram no sentido da verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa, pelo que deveriam os réus ser condenados na restituição da quantia peticionada, acrescida dos respectivos juros legais. Já os réus negaram a verificação dos referidos pressupostos e invocaram a prescrição de um hipotético crédito dos autores proveniente de tal fonte.

    Em seguida, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente: a) Condenou o réu CC a restituir, à autora BB, a quantia de € 80.500, a título de enriquecimento sem causa, por ter recebido prestação daquele montante num momento em que a condição suspensiva de pagamento de 1/3 da indemnização que a “EE” lhe viesse efectivamente a entregar, não se tinha verificado, acrescida de juros legais contados desde 28.02.2017; b) Absolveu o réu CC do pedido na parte restante; c) Absolveu a ré DD do pedido.

  4. Inconformado o Réu CC interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 08 de Fevereiro de 2018, decidiu julgar o recurso procedente, anulando a sentença recorrida e, absolvendo os réus do pedido.

  5. Os Autores AA e BB - Sociedade Comercial de Combustíveis, Lda.

    interpuseram Recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam as seguintes conclusões: 1.

    A sentença em 1.ª instância tomou em consideração os factos articulados pelas partes, pelo que se limitou a socorrer de elementos que não estavam vedados ao seu conhecimento; e, ao servir-se dos factos articulados pelas partes, deu como verificada uma situação de enriquecimento sem causa que não fora alegada, depois de as partes terem tido a oportunidade de se pronunciar sobre o assunto, pelo que não merece censura, já que viu, na prática dos factos alegados pelas partes, um ato jurídico que as partes não tinham invocado (enriquecimento sem causa) - mas não houve nisto exorbitância; o tribunal limitou-se a qualificar juridicamente os factos conforme lhe pareceu acertado, pelo que fez uso de um poder discricionário e legítimo: o poder de livre qualificação jurídica dos factos narrados pelas partes.

  6. O tribunal de instância não transpôs os limites decorrentes da causa de pedir, nem manifestou conhecimento por qualquer questão que estivesse vedada ao seu poder de apreciação jurisdicional; ao decidir como decidiu, apenas fez coincidir o pedido e o julgado e, além disso, a causa de pedir {causa petendi) e a causa de julgar {causa judicandi) - a causa de pedir é o ato ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida em juízo, ou seja, é o facto jurídico que constitui o fundamento legai do benefício ou do direito, objecto do pedido; é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petitionis - daí que a causa petendi não é a norma abstracta de lei invocada pela parte, mas o facto que se alega como expressão da vontade concreta da regra legal; de sorte que a simples mudança de ponto de vista jurídico, isto é, a invocação de normal legal diversa, não significa diversidade de causa de pedir; essa mudança é lícita ao juiz.

  7. A decisão da 1.ª instância foi criteriosa na avaliação da prova produzida em julgamento e, tendo em conta os factos dados como provados, retirou as ilações adequadas, após ter dado às partes a oportunidade para se pronunciarem, em cumprimento do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, e depois concluiu pela necessidade de repetição do indevido, o que deixou sublinhar de forma clara e perceptível: 'Tendo a acção sido instaurada no pressuposto da validade de um determinado negócio, mas tendo-se concluído pela nulidade desse negócio, deverá o tribunal extrair daí o efeito devido e que decorre da lei, sendo certo que o mesmo não extravasa o objecto da causa nem o que foi peticionado, pois em ambos os casos_ se visa a restituição do que foi prestado".

  8. Em conformidade, apontou a verificação de todos os elementos que levam à necessidade de repetição do indevido, com o objectivo evidente (que, pelos vistos, passou ao lado da decisão recorrida) de evitar um "enriquecimento injusto", ou seja, um enriquecimento sem causa justificativa, aquele em que a falta de causa justificativa se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento: a intenção de cumprir uma obrigação que não existia; o próprio enriquecimento; a falta de causa justificativa do enriquecimento; o enriquecimento obtido à custa de quem pretende a restituição; a inexistência de outro meio que faculte ao empobrecido ser ressarcido/indemnizado.

  9. O que significa dizer que a magistrada signatária da sentença agiu com a amplitude que é devida e esperada a um Juiz, uma vez que indagou e interpretou a regra de direito, pertencendo-lhe a operação delicada da qualificação jurídica dos factos, o seu enquadramento no regime legal, que é função própria de um magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade que a lei deixa assinalar nos artigos 5.º, n.º 3, 607.º, n.ºs 4 e 5, e 608.º, n.º 2, do CPC, no caso concreto para enquadrar a causa de pedir no instituto do enriquecimento sem causa e no regime legal consagrado nos artigos 473.º a 482.º do Código Civil (CC), assim evitando o inevitável locupletamento à custa alheia e sem causa justificativa ou o enriquecimento injusto que a situação material dos autos pressupõe - pelo que bem esteve, a nosso ver: desde que o tribunal se serviu unicamente dos factos alegados pelas partes, respeitou a regra enunciada nos artigos 5.º, n.º 3, e 607.º, n.º 2, do CPC; limitou-se a ver, na prática desses factos, um ato jurídico que as partes não tinham invocado (enriquecimento sem causa); mas não houve nisto exorbitância; o tribunal limitou-se a qualificar juridicamente os factos conforme lhe pareceu acertado; fez uso de um poder legítimo: o poder de livre qualificação jurídica dos factos narrados pelas partes.

  10. Acresce que nem sequer foi substituído um contrato por outro contrato, extravasando a sua amplitude de decisão...

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