Acórdão nº 1085/14.8TBCTB-A.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 08 de Outubro de 2015

Magistrado ResponsávelMARIA CLARA SOTTOMAYOR
Data da Resolução08 de Outubro de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I – Relatório AA e mulher, BB, intentam a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra SCUTVIAS – Autoestradas da Beira Interior, S.A.

, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 1.687,07, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos respetivos juros de mora, com fundamento na ocorrência de um acidente de viação do qual terão resultado danos na viatura automóvel propriedade dos Autores e que terá originado a privação de uso do veículo e danos não patrimoniais na Autora, derivados do embate num animal que se encontrava na via, imputando a responsabilidade do mesmo à ré por atos e omissões decorrentes da sua atividade enquanto concessionária da A23.

A Ré apresentou contestação, invocando, além do mais, a incompetência material do tribunal, porquanto a competência para apreciação do presente litígio pertence a um Tribunal de jurisdição Administrativa, pelo facto de se tratar de uma relação jurídico-administrativa e de a atuação da Ré ser realizada no âmbito do exercício de funções administrativas ou de poderes/deveres públicos.

Pelo juiz a quo proferido despacho a julgar improcedente a invocada exceção de incompetência material, declarando-se “competente para conhecimento do litígio em causa nos autos”.

Não se conformando com tal despacho, a Ré dele interpôs recurso de apelação, tendo os juízes do Tribunal da Relação acordado em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Novamente inconformada, interpõe a Ré recurso de revista, o qual foi admitido ao abrigo do art. 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, por se tratar de um caso em que a lei processual admite sempre recurso.

Na sua alegação de revista, a Ré formulou as seguintes conclusões: «1.ª O acórdão sub judice enferma de erro de direito e viola por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, 1.º e 4.º, n.º 1, alínea i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 1.º, n.º 5 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, 10.º, n.º 7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 64.º do Código de Processo Civil.

  1. A responsabilidade da concessionária perante terceiros é uma responsabilidade extracontratual, delitual ou aquiliana, como tem sido maioritariamente defendido pela doutrina e jurisprudência (cf. na jurisprudência, Acórdão do Tribunal de Conflitos de 27-02-2014, proferido no processo 048/13, relatado pelo Conselheiro Tavares de Paiva, disponível para consulta em www.dgsi.pt e, na doutrina, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Responsabilidade civil dos concessionários de auto-estradas, Anotação ao acórdão do TCA Norte de 6.5.2010, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 92, Março/Abril de 2012, págs. 47 e 48, António Menezes Cordeiro, Igualdade rodoviária e acidentes de viação nas auto-estradas, Almedina, 2004, págs 56 e Manuel A. Carneiro da Frada, in Sobre a responsabilidade das concessionárias por acidentes ocorridos em auto-estradas, em ROA, 2005, II, pág. 407 a 433).

  2. Nos termos da lei, são da competência dos tribunais administrativos a apreciação de litígios que tenham subjacentes relações jurídicas administrativas, entendidas como “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública, ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”, assumindo, consequentemente, os tribunais judiciais uma competência meramente residual (…).

  3. De acordo com o disposto no artigo 4.º, n.º1, al. i) do ETAF, “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: i) a responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”, circunstância que ocorrerá sempre que, nos termos previstos no artigo 1.º, n.º 5 do Regime da Responsabilidade Civil de Estado e demais entidades públicas, os atos ou omissão praticados por sujeitos privados e causadores de danos sejam adotados “no exercício de prerrogativas de poder público” ou “sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (…).

  4. Com a entrada em vigor do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro (o que, nos termos estabelecidos no seu art. 6.º, ocorreu em 30 de janeiro de 2008, atendendo a que a lei entraria “em vigor no prazo de 30 dias após a sua publicação”), passou a estar legalmente consagrada a aplicabilidade do regime específico de responsabilidade do Estado aos particulares.

  5. O Código de Processo nos Tribunais Administrativos atribui legitimidade passiva a entidades privadas no seu artigo 10.º, n.º 7, ao estabelecer que as mesmas podem ser demandadas perante os tribunais administrativos, sendo que a causa de pedir e o pedido formulados pelo Autor na petição inicial, são elementos relevantes na determinação da competência do tribunal (…).

  6. Atenta a causa de pedir e pedido formulados pelos Autores, ora Recorridos (elementos relevantes na determinação da competência do tribunal) na petição inicial, é manifesto que os mesmos pretendem efetivar a responsabilidade civil extracontratual da Ré, ora Recorrente (cf. artigos 21.º e 22.º da petição inicial, entre outros).

  7. O litígio que se pretende discutir nos presentes autos e que consubstancia a causa de pedir dos Autores envolve a apreciação do exercício por parte da Ré/Recorrente, Concessionária, de um poder público, que visa a manutenção das autoestradas que integram o domínio público do Estado que estão subconcessionadas em bom estado de conservação e em perfeitas condições de segurança e comodidade de circulação (…).

  8. Integrando estas atuações o conceito de relação jurídica administrativa, por se estar perante uma “entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”, dúvidas não restam que nos termos estabelecidos nos artigos 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 10.º, n.º 7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, a competência para apreciar o presente litígio pertence aos Tribunais Administrativos (…).

  9. Ao contrário do sufragado pelo Tribunal a quo no despacho recorrido, o presente caso é subsumível ao disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. i) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já que não restam dúvidas que o Regime de Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas é aplicável à Recorrente por via do disposto no artigo 1.º, n.º 5 da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro que estabelece a aplicação desse regime a “pessoas colectivas de direito privado (…) por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (…).

  10. A circunstância das Bases da Concessão remeterem, nos casos de responsabilidade da concessionária perante terceiros, para a lei geral, não obsta à sujeição do caso sub judice ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, apenas significando que esse regime não se encontra regulado no Contrato de Concessão, mas sem se debruçar sobre a sua natureza (….). 12.ª O Tribunal materialmente competente para julgar a presente causa só pode ser o Administrativo, devendo ser declarada a incompetência absoluta da Secção Cível da Instância Local de Castelo Branco para apreciação do presente litígio.

II – Delimitação do objecto do recurso Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º e 639.º, do Novo Código de Processo Civil), a questão a decidir é uma só: 1. Competência material do tribunal para apreciar a responsabilidade civil de uma concessionária de auto-estradas pelos danos causados aos utentes por desrespeito das normas de segurança.

III – Fundamentação de direito 1.

No caso vertente está em causa a questão da determinação do tribunal materialmente competente (tribunal comum ou tribunal administrativo) para conhecer de um litígio entre uma empresa concessionária de auto-estradas e dois cidadãos utentes das auto-estradas. O litígio refere-se à responsabilidade civil desta empresa por danos patrimoniais e não patrimoniais causados na sequência de um acidente de viação derivado de um embate num animal que se encontrava na via. As instâncias entenderam que o tribunal competente para o conhecimento do litígio em causa era o tribunal comum. Contudo, no Tribunal da Relação, a decisão não foi tomada por unanimidade, tendo havido um voto de vencido.

O Tribunal da Relação fundamentou a decisão que fez vencimento da seguinte forma: «Encontrando-se em causa uma alegada violação por parte da Concessionária/Ré da obrigação de manutenção da auto-estrada em bom estado de conservação e de assegurar permanentemente em boas condições de segurança a circulação, nomeadamente de manutenção das vedações em bom estado de conservação (Bases XLIII, LI e XXVIII), o que se questiona são atos de mera gestão privada, em que aquela atua despida de prerrogativas de autoridade pública.

Por fim, à aplicação a entidades privadas do regime...

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