Acórdão nº 409/08 de Tribunal Constitucional (Port, 31 de Julho de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução31 de Julho de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 409/2008 Processo n.º 361/08 2.ª Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

1. Relatório

A. foi condenado, por sentença de 19 de Abril de 2007 do Tribunal Judicial da Comarca de Ovar, como autor de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.ºs 1 e 5, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa pelo período de 3 anos, com a obrigação de o arguido pagar, durante o período da suspensão, ao Estado Português a quantia de € 35 333,33.

Desta sentença interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do Porto, suscitando na respectiva motivação, para além do mais (prescrição do procedimento criminal, errado enquadramento legal dos factos praticados, violação dos artigos 40.º e 70.º do Código Penal e verificação de circunstâncias que imporiam a atenuação especial da pena), questões relativas: (i) à nulidade da decisão por violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal; (ii) à nulidade da decisão por da acusação não constarem factos suficientes para condenar o arguido e por violação do princípio do acusatório, por a condenação ter sido proferida com base em factos não compreendidos naquela peça processual e ocorridos após a sua prolação; e (iii) à violação do princípio da legalidade – com base em argumentação sintetizada nas seguintes conclusões:

“1.ª – Foi o recorrente condenado como autor de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, em pena de prisão de um ano e seis meses, suspensa na sua execução, e subordinada à condição do pagamento da quantia de € 35 333,33.

2.ª – Sucede, no entanto, que não só deveria o arguido ser absolvido da prática de tal crime, como também enferma a douta sentença em recurso de nulidade insanável.

3.ª – De facto, a 1 de Janeiro de 2007 entrou em vigor a Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, que veio introduzir alterações ao RGIT.

4.ª – A alteração em causa incidiu sobre o n.º 4 do artigo 105.º do invocado diploma legal, através do acrescento de uma nova alínea b).

5.ª – Confrontando o regime legal resultante da invocada alteração com o regime legal anterior, constata-se então que, para que se verifique a ocorrência de um crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário que ocorra uma notificação para que o agente, em trinta dias, proceda ao pagamento da prestação tributária em falta, acrescida dos juros e eventual coima.

6.ª – Tal alteração consubstancia uma verdadeira despenalização dos factos que, face à anterior lei, constituía crime de abuso de confiança fiscal.

7.ª – Na verdade, no regime anteriormente vigente, o tipo de ilícito reconduzia-se a uma mora qualificada no tempo, sendo a mora simples punida como contra-ordenação, ilícito de menor gravidade.

8.ª – Presentemente, o legislador aditou uma circunstância que, por referir-se ao agente, encontra-se no cerne da conduta proibida.

9.ª – Com efeito, na nova lei, impõe-se agora que o agente não entregue à Administração Tributária, total ou parcialmente, prestação tributária, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigada a entregar, pelo prazo superior a 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação e desde que não tenha procedido ao pagamento da prestação comunicada à Administração Tributária, através da correspondente declaração, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

10.ª – E, deste modo, o legislador até agora criminalizava uma mora qualificada relativamente a um objecto material do crime, o imposto, atendendo aos fins deste. Actualmente, pretende estabelecer como crime uma mora específica e um contexto relacional qualificado.

11.ª – Ora, de acordo com o artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número de infracções.

12.ª – Assim, ao não determinar a extinção do procedimento criminal, e, ao invés, ao ter condenado o aqui recorrente em pena de prisão, violou a douta sentença o disposto no referido artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.

Sem conceder,

13.ª – Mesmo que se não entenda que ocorreu despenalização dos factos imputados ao recorrente, o que é certo é que nunca a douta sentença ora em recurso deveria ter condenado o arguido, enfermando a mesma de nulidade.

14.ª – Assim, mesmo que se entenda que a nova alteração veio, não configurar despenalização, mas sim acrescentar uma nova condição de punibilidade, o que é certo é que da acusação não constavam factos suficientes para que, mesmo que provada, viesse o procedimento criminal a terminar, tal como terminou, na condenação do arguido aqui recorrente.

15.ª – De facto, não obstante não ter ocorrido qualquer alteração ao conteúdo da acusação, nos termos do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, o que é certo é que, já após a realização da audiência de julgamento, o tribunal notificou o arguido para efectuar o pagamento dos tributos em causa, acrescido da respectiva coima e encargos legais, sendo que, após tal notificação, e após ter ultrapassado o prazo sem que o pagamento se verificasse, veio a douta sentença a incluir tais factos e assim veio a condenar o recorrente.

16.ª – Ora, a inclusão destes factos, que no fundo traduzem os factos consubstanciadores das novas condições de punibilidade, viola a lei, consubstanciando nulidade.

17.ª – Na verdade, de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, a acusação considerar-se-á infundamentada quando não contenha a narração dos factos ou quando os factos não constituírem crime.

18.ª – Por outro lado, e de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, a sentença será considerada nula quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia ou quando o tribunal conheça ou se pronuncie sobre questões de que não podia tomar conhecimento.

19.ª – Ora, conforme decorre do exposto, o tribunal, de facto, conheceu de factos não constantes da douta acusação, e concretamente avaliou e ponderou a falta de pagamento dos tributos por parte do arguido, no prazo de trinta dias.

20.ª – Com efeito, face à lei actual, os prazos que ora são consignados fazem parte integral do ilícito penal do crime de abuso de confiança fiscal, pois que para que se verifique o crime de abuso de confiança fiscal é sempre necessário, para além do decurso do prazo legal da entrega da prestação, existir o não pagamento na sequência de uma notificação para que o agente, em trinta dias, proceda ao pagamento da prestação comunicada à Administração Fiscal, acrescida de juros e do valor da coima aplicável.

21.ª – Ora, se as novas condições de punibilidade respeitantes ao tipo de ilícito em causa se não encontram na acusação, não pode o Tribunal substituir-se ao Ministério Público, ou à Administração Fiscal, aditando os elementos em falta.

22.ª – Consequentemente, não só, no caso em apreço, a acusação se demonstrava infundada, como também o tribunal se pronunciou sobre factos não constantes na mesmíssima acusação.

23.ª – Como tal, enferma a douta sentença de nulidade de acordo com o preceituado nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.

24.ª – Por outro lado, viola ainda a douta sentença o princípio do acusatório, já que tal sentença condenatória foi proferida com base na falta de pagamento dos tributos no prazo de trinta dias após notificação efectuada pelo Tribunal, sendo que, não só tais factos se não compreendiam na acusação, como, inclusivamente, são factos posteriores à prolação de tal acusação e mesmo, até, da audiência de julgamento.

25.ª – Para além de violar o princípio do acusatório, violou também a sentença em causa o princípio da legalidade.

26.ª – Com efeito, ao substituir-se o Tribunal ao Ministério Público, e deste modo à Administração Fiscal, notificando o ora recorrente para efectuar o pagamento dos tributos e demais acréscimos, ofendeu os ditames constitucionais consagrados nos artigos 202.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa, incorrendo deste modo em interpretação inconstitucional do preceito legal resultante da nova redacção introduzida pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ao n.º 4 do art. 105.º do RGIT.”

Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Dezembro de 2007, foi concedido parcial provimento ao recurso, ficando o recorrente condenado, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (cujo regime foi considerado mais favorável para o arguido que o constante do artigo 24.º, n.ºs 1 e 5, do RJIFNA), na pena de 14 meses de prisão, com suspensão da sua execução pelo período de 14 meses, subordinada à condição de o arguido pagar ao Estado a quantia de € 35 333,33 durante o período de suspensão. Relativamente às questões suscitadas nas conclusões da motivação atrás transcritas, expendeu o referido acórdão:

“II – Nulidade da decisão recorrida por violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal.

O arguido imputa à decisão recorrida a violação do artigo 2.º, n.º 2, do Código Penal, isto porque com a entrada em vigor da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, ocorreu uma verdadeira despenalização dos factos que, face à lei anterior, integravam o tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.

O artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias contém a previsão do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Nos termos do seu n.º 1, «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
8 temas prácticos
10 sentencias
  • Acórdão nº 4392/17.4T9AVR.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 14-12-2022
    • Portugal
    • Tribunal da Relação do Porto
    • 14 Diciembre 2022
    ...o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside. O citado Acórdão TC n.º 409/2008 decidiu, aliás, não julgar inconstitucional a norma do artigo 104.º, n.º1, al. b) do RGIT, na redação dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/20......
  • Acórdão nº 4392/17.4T9AVR.P2 de Tribunal da Relação do Porto, 28-06-2023
    • Portugal
    • Tribunal da Relação do Porto
    • 28 Junio 2023
    ...o processo em fase de inquérito ou instrução, por determinação do Ministério Público ou do juiz que a esta preside. O citado Acórdão TC n.º 409/2008 decidiu, aliás, não julgar inconstitucional a norma do artigo 104.º, n.º1, al. b) do RGIT, na redação dada pelo artigo 95.º da Lei n.º 53-A/20......
  • Acórdão nº 1391/11.3TAPTM.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 11 de Maio de 2021
    • Portugal
    • 11 Mayo 2021
    ...à dedução da acusação, porquanto sempre o tribunal do julgamento poderia suprir aquela omissão, invocando o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 409/2008, de 24-09, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.05.2008, proferido no Proc. n.º Acontece que não lhe assiste raz......
  • Acórdão nº 0846954 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 18 de Fevereiro de 2009
    • Portugal
    • Court of Appeal of Porto (Portugal)
    • 18 Febrero 2009
    ...violação da lei [ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008. D.R. n.º 94, Série I de 2008-05-15 e Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 409/2008, D.R. n.º 185, Série II]. De facto, o entendimento segundo o qual "competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do n......
  • Peça sua avaliação para resultados completos

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT