Acórdão nº 335/08 de Tribunal Constitucional (Port, 19 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução19 de Junho de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 335/2008

Processo n.º 74/08

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

No âmbito dos autos de reclamação e graduação de créditos que correm por apenso ao processo de falência, pendente no 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos sob o n.º 2427/03.7 TBBCL-D, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, a qual, por referência ao produto da liquidação do bem imóvel aí apreendido, graduou os créditos reclamados pelos trabalhadores da falida antes do crédito garantido por hipotecas voluntárias reclamado pela “A., S.A.”.

Para tanto, o tribunal aplicou a norma constante do artigo 377.º, n.º 1, alínea b), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, na interpretação segundo a qual a referida norma é aplicável aos contratos de trabalho vigentes à data da sua entrada em vigor e que os créditos laborais deles emergentes são garantidos por privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais os trabalhadores prestaram a sua actividade, com preferência à hipoteca voluntária constituída sobre esses bens em data anterior à da entrada em vigor da referida norma.

O referido credor bancário interpôs recurso de apelação desta decisão, mas o Tribunal da Relação de Guimarães viria a julgá-lo totalmente improcedente, mantendo assim a sentença recorrida.

O Tribunal da Relação de Guimarães fundamentou a respectiva decisão pela seguinte forma, na parte que ora releva:

“(...)

i) Os créditos laborais preferem aos demais (ainda que garantidos com hipoteca) por força do art. 377º do CT:

A questão colocada prende-se essencialmente com saber qual a lei aplicável aos créditos dos trabalhadores no que respeita aos privilégios concedidos, e qual a respectiva preferência no confronto com a garantia hipotecária do apelante.

Sustenta a apelante que encontrando-se o seu crédito garantido por hipoteca, dispondo a lei para o futuro – artigo 12, nº 1 do CC –, o privilégio imobiliário especial previsto no novo Código do Trabalho só prefere às hipotecas registadas após a sua entrada em vigor, ocorrida a 01/12/2003.

A Lei 17/86, de 14/6 no seu artigo 12.º, nº 1, consagra para os créditos emergentes do contrato individual de trabalho por ela regulados, privilégio mobiliário e imobiliários gerais.

No nº 3 do citado artigo dispõe-se sobre a graduação dos créditos, referindo quanto aos imobiliários que se graduam antes dos créditos referidos no art. 748.º, do C.C., e antes dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.

A Lei 96/01, de 20.8, estabeleceu no seu art. 4.º, que os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei 17/86, de 14.6, também gozavam de privilégio mobiliário e imobiliário gerais, exceptuando-se, tão somente, os créditos de carácter excepcional, nomeadamente as gratificações extraordinárias e a participação nos lucros das empresas.

Este quadro sofreu alterações como o novo C.T. aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08.

O art. 377 do C.T. regula a matéria nos seguintes termos:

Privilégios creditórios:

1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:

a) Privilégio mobiliário geral;

b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

2 – A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747º do Código Civil;

b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.

Foi este o normativo aplicado aos créditos dos trabalhadores, graduando-os à frente do crédito da apelante garantido por hipoteca.

O C.T. entrou em vigor a 01/12/2003, conforme artigo 3º, nº 1 da L. 99/2003 de 27/8.

No anterior regime e relativamente ao privilégio imobiliário geral desenharam-se duas correntes, uma no sentido da sujeição deste ao disposto no artigo 749º do CC e outra no sentido da sujeição ao artigo 751º do CC.

A corrente que entendia ser aplicável o art. 749, claramente maioritário, muito ficou a dever aos Acs. do TC nºs 362/2002 e 363/02 (DR I-A, de 16/10/02), que declararam a inconstitucionalidade com forma obrigatória geral o artigo 104 do CIRS (VO) e art. 11 da L.n.º 103/80, na interpretação segundo a qual os privilégios imobiliários gerais aí concedidos aos créditos de IRS e da segurança social preferem à hipoteca, nos termos do artigo 751º do CC.

Importa no entanto referir que relativamente a igual privilégio concedido aos trabalhadores, não se pronunciando embora, porque tal não lhe competia, sobre se é de aplicar o art. 749º ou 751º do C.Civ., o mesmo tribunal por Acórdão nº 498/2003 – DR, II de 3/1/04 –, concluiu por unanimidade, pela não inconstitucionalidade da norma constante da al. b) do nº 1 do artigo 12º da L.S.A. (na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca.

A nova lei veio resolver esta querela.

Estamos agora face a um privilégio imobiliário especial, a que se aplica sem margem para dúvidas a preferência do artº 751º, do C.C..

A questão que ora se coloca é a de saber se este privilégio prevalece sobre a hipoteca voluntária constituída antes da data da entrada em vigor do CT.

A apelante faz apelo ao artigo 12 do CC.

Dispõe o normativo:

  1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

  2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

    O nº 2 do artigo, como refere Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2000, pág. 233, distingue dois tipos de leis ou de normas, “aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu IV” – (SJ – situações jurídicas; LN – Lei nova; IV – início de vigência).

    Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, 3ª ed. rev., pág. 61 em nota ao artigo 12, referem que “Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei já é aplicável”.

    Aos factos “passados” que deram origem às “situações jurídicas”, no caso da 2ª parte do n º 2 aludido, não é atribuído valor constitutivo, sendo utilizados apenas como pontos de referência para a definição do regime de direito material da situação jurídica existente – Baptista Machado, mesma obra, obra, pág. 236. Como refere o Ac. STJ de 5/5/94, 4J 437, pág. 480, seguindo a obra “ Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil” daquele mesmo autor, “a disposição legislativa «abstrairá dos factos constitutivos da situação jurídica contratual, quando for dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica (por exemplo uma relação jurídica de trabalho, por uma relação jurídica de arrendamento, etc.) – de modo a poder dizer-se que tal disposição atinge as pessoas não enquanto contratantes, mas enquanto pessoas ligadas por certo vínculo contratual (enquanto patrões e operários, enquanto senhorios e inquilinos, etc.)”. Os preceitos relativos a privilégios dispõem directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. Limitam-se a definir, de acordo com a recente opção do legislador, a garantia patrimonial de determinados créditos. Caiem consequentemente na alçada na 2ª parte do nº 2 do artigo 12 do CC., aplicando-se aos créditos já constituídos.

    Não ocorre sequer, no caso presente, alteração de qualquer regra relativa à hipoteca. A relação entre a apelante enquanto credora e a devedora não foi objecto de qualquer nova regra. O que se verifica é efeito reflexo sobre a hipoteca, por força do privilégio concedido aos trabalhadores no art. 377 do CT, “desgraduando-a” no “computo” das “garantias” (isto para quem entenda que ao anterior privilégio era aplicável o artigo 749 do CC).

    Poderia entender-se que não tendo a norma em causa regulado a relação jurídica invocada pela apelante, haveria que respeitar tal relação nos termos da lei anterior. Tal conclusão é contrária ao disposto no artigo 12, nº 2, 2ª parte do CC.

    O que o princípio da não retroactividade ressalva, grosso modo, são os efeitos já produzidos por factos passados. Ora a hipoteca voluntário respeita ao modo de realização do direito, conferindo ao crédito garantido determinada preferência de pagamento no confronto com outros credores. O efeito próprio da hipoteca apenas se realiza a partir do momento em que pode ser “accionada”. A menos que se considere como efeito directo da hipoteca, como resultado directo e imediato do registo desta, a atribuição do direito a determinada posição preferencial no quadro das garantias, ou seja, do direito à cristalização, em tal data, das regras atinentes às garantias e para efeitos do respectivo crédito.

    Tal é contrário à natureza da hipoteca. A simples garantia atribui ao credor um direito em potência...

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