Acórdão nº 0743248 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 12 de Dezembro de 2007

Magistrado ResponsávelPINTO MONTEIRO
Data da Resolução12 de Dezembro de 2007
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4.ª sec. (2.ª sec. criminal) do Tribunal da Relação do Porto: Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido B.........., pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 220.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, distribuído o processo, com o n.º ..../06.OTAMTS, ao ..º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, foi, por despacho de 29/01/2007, declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido e determinado o arquivamento dos autos.

É a seguinte a fundamentação desse despacho: Vem o/a arguido/a acusado/a da prática de um crime de burla para obtenção de serviços, previsto e punido pelo artigo 220º, n.º 1, al. c), do Cód. Penal.

Nos termos desta disposição legal, na parte que nos interessa, "Quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (...) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.".

Entretanto, entrou em vigor no passado dia 4 de Novembro a Lei 28/2006, de 4.07 E, de acordo com o artº 1º desta Lei n.º 28/2006 que "A presente lei estabelece as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção." (sublinhado nosso). Da análise desta disposição legal é desde logo possível intuir-se uma pretensão de regulamentação globalizante desta temática, tendo-se como se disse, através do respectivo artigo 15º revogado na íntegra o Decreto-Lei n.º 108/78 e ainda o n.º 1 do artigo 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 39780/1954, de 21 de Agosto, cujo conteúdo era semelhante, mas aplicável no âmbito dos caminhos-de-ferro, com regulamentação expressamente diferenciada do pretérito Decreto-Lei n.º 108/78.

No mais, estatui-se da mesma forma que é obrigatória a detenção de título de transporte válido (cfr. artigo 2º, n.º 1), sendo a violação desta norma agora sancionada, em termos gerais, nos termos do artigo 7º, n.º 1, nos moldes seguintes: "A falta de título de transporte válido, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, em comboios, autocarros, troleicarros, carros eléctricos, transportes fluviais, ferroviários, metropolitano e metro ligeiro, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com o respeito pelos limites máximos previstos no artigo 17º do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo, constante do Decreto-Lei n.º 433/1982, de 27 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/1989, de 17 de Outubro, Decreto-Lei n.º 244/1995, de 14 de Setembro, e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro, e sem prejuízo do disposto no n.º 3 do presente artigo." (sublinhados nossos).

Dos termos desta disposição legal é desde logo de realçar o sancionamento com coima (e já não com multa), a declaração marcada que a infracção "é punida" como tal, e a referência expressa ao regime do ilícito de mera ordenação social previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que, aliás, é inclusivamente estabelecido como regime legal subsidiário, nos termos do subsequente artigo 12º. Do que se vem dizendo até agora fica assim definitivamente afastado, pelo menos, o sancionamento a título de contravenção.

Prosseguindo na nossa análise, temos que se mantém a possibilidade de pagamento voluntário da coima, quer logo perante o agente de fiscalização, quer num posterior prazo de cinco dias úteis (cfr. artigo 9º, n.º 1). No entanto, caso o agente não use desta faculdade, verifica-se aqui uma diferença de monta face ao anterior regime constante do Decreto-Lei n.º 108/78: estabelece agora o subsequente n.º 2 que, nestes casos, "a empresa exploradora do serviço de transporte em questão envia o auto de notícia à entidade competente, que instaura, no âmbito da competência prevista na presente lei, o correspondente processo de contra-ordenação e notifica o arguido, juntando à notificação duplicado do auto de notícia.". Diferentemente, nos termos do pretérito Decreto-Lei n.º 108/78 (artigo 5º, n.º 5), "Findo o prazo a que se refere o n.º 1 (prazo de pagamento voluntário) e sem que o pagamento tenha sido efectuado, será o original do auto enviado ao Tribunal da Comarca do lugar da infracção".

A diferença é relevante na medida em que, agora de forma totalmente invalidada, se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 18 de Novembro de 2004, relatado por Francisco Caramelo, e no Acórdão da Relação do Porto de 22 de Janeiro de 2004, relatado por Almeida Cabral, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, que a remessa do auto para o tribunal nos termos do artigo 5º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 108/78 só se entenderia como sendo-o para efeitos de procedimento criminal, também como forma de não resultar esvaziada a norma do artigo 220º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal.

Assim, como se viu, em caso algum há na actualidade remessa do auto para o tribunal nesta fase, mas sim para a entidade competente para o subsequente processo contra-ordenacional, que é, nos termos do artigo 10º da Lei n.º 28/2006, e conforme os casos, a Direcção-Geral dos Transportes Terrestres e Fluviais ou o Instituto Nacional do Transporte Ferroviário.

Prosseguindo, estabelece a nova lei em sujeito, no respectivo artigo 14º um regime transitório que, digamo-lo desde já, não deixa de poder suscitar alguma estranheza face à vasta pendência de processos da natureza criminal como o presente por factos constantes de tal nova lei: é que de parte nenhuma de tal regime transitório se faz referência a tais processos criminais, parecendo que o legislador ou ignora ou afasta a existência dos mesmos. Com efeito, estabelece o n.º 1 que "As contravenções e transgressões praticadas antes da data da entrada em vigor da presente lei são sancionadas como contra-ordenações, sem prejuízo da aplicação do regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, nomeadamente quanto à medida das sanções aplicáveis.". Por seu turno, reza o n.º 2 que "Os processos por factos praticados antes da data da entrada em vigor da presente lei pendentes em tribunal nessa data continuam a correr os seus termos perante os tribunais em que se encontrem, sendo-lhes aplicável, até ao trânsito em julgado da decisão que lhes ponha termo, a legislação processual relativa às contravenções e transgressões.". Mesmo neste último caso parece mais uma vez que tais processos serão apenas relativos a contravenções ou transgressões, uma vez que "continuam" nos mesmos moldes até final.

Ora, afastando, por irrazoável, o "esquecimento" ou "ignorância" do legislador (e presumindo que o mesmo consagra sempre as soluções mais acertadas e se sabe exprimir adequadamente, nos termos do artigo 9º, n.º 3, do Cód. Civil), tal regime transitório pode perfeitamente ser entendido como uma forma de se vislumbrar uma espécie de expressão de vontade manifestada agora pelo legislador no sentido de que as infracções que aqui se encontram em causa deveriam sempre ter sido entendidas como ilícito contravencional, e não como ilícito criminal.

Acresce ainda que não nos parece de todo razoável ou coerente defender a ideia segundo a qual coexistirá o ilícito contravencional para os casos de negligência e o criminal para os casos de dolo. É que, pretendendo agora, com lei nova e posterior ao Código Penal, estabelecer-se a falta de porte de título válido como contra-ordenação, e extraindo todas as consequências de se trazer à liça, como direito subsidiário, todo o regime do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, estabelece então o correspondente artigo 8º, n.º 1, que "Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência". No caso vertente, a infracção por negligência encontra-se prevista (cfr. artigo 7º, n.º 6 da nova lei), mas o que é facto é que o regime regra de punibilidade continua a ser a título de dolo (tanto mais que a referência expressa à punibilidade negligente foi considerada, e bem, como necessária), sendo certo que desta feita não se pode considerar que os casos em que tal dolo se verifica são afastados pelo Código Penal, uma vez que a nova lei em sujeito lhe é posterior.

De referir ainda que mesmo o argumento segundo o qual persistiria em simultâneo o ilícito contravencional como forma de proteger o bom funcionamento e a credibilidade dos transportes públicos colectivos, e o ilícito criminal como forma de proteger o património da empresa transportadora perdeu acutilância. Na verdade, já não se torna premente a protecção do património da empresa transportadora a título criminal, uma vez que, nos termos do artigo 11º da nova lei, uma percentagem do produto das coimas aplicadas reverte sempre a favor de tal empresa, enquanto que nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 1008/78 a multa constituía receita do Estado.

Assim, da análise do novo diploma legal que se vem empreendendo, é já por demais evidente que propendemos para considerar que os factos em apreço nestes autos se encontram actualmente punidos exclusivamente como ilícito contra-ordenacional, atenta a forma esgotante como o legislador pretendeu agora regular a situação. Particularmente impressivo é, no nosso entender, e como se disse, a remessa do auto para entidade administrativa mesmo após a falta de pagamento voluntário, e a consequente intervenção de todo o arsenal normativo do Decreto-Lei n.º 433/82, mesmo, caso seja necessário, para eventual execução do valor coima por parte do Ministério Público. Tal novo regime obedece também, e além do mais, ao propósito actual e confessado do legislador em proceder por este meio à progressiva abolição do ilícito...

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