Acórdão nº 614/03 de Tribunal Constitucional (Port, 12 de Dezembro de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Mota Pinto
Data da Resolução12 de Dezembro de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 614/2003 Processo n.º 684/03 2ª Secção

Relator ? Cons. Paulo Mota Pinto

Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:

  1. Relatóriotc "I. Relatório" AUTONUM 1.tc "1. Reclamação da distribuição e seu indeferimento"A., B., C., D., E. e F., melhor identificados nos autos, vieram reclamar, ?nos termos do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi art. 4º do C.P.P.?, da distribuição efectuada no Tribunal da Relação de Lisboa do processo relativo a incidente de recusa ?que apresentaram relativamente ao Juiz de Instrução (?), com referência ao processo do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal NUIPC 1718/02.9JDLSB?.

    Pode ler-se na fundamentação dessa reclamação:

    ?1º Na 1ª instância, existem regras precisas acerca dos dias da distribuição, nos termos do art. 214º do C.P.C.; mas, nos tribunais superiores, o art. 223º, n.º 1, do C.P.C. limita-se a estabelecer que a distribuição se faz na primeira sessão seguinte à apresentação, o que tem implicado a existência de regras regulamentares próprias para cada um desses tribunais superiores.

    1. No caso da Relação de Lisboa, através do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro (cfr. Doc. 2), o Senhor Presidente da Relação, no que ora está em causa, estabeleceu a seguinte regra: Nas férias judiciais os processos crime de natureza urgente serão também distribuídos às segundas-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal.

    2. Tanto quanto é do conhecimento dos Requerentes, essa regra tem sido praticada durante as presentes férias judiciais, mas ontem, dia 3 de Setembro, quarta-feira, foi realizada uma distribuição que abrangeu o incidente em causa, o qual obviamente não cabe no âmbito da excepção acima referida.

    3. Assim sendo, a distribuição que ocorreu ontem contrariou as regras procedimentais em vigor aquando da apresentação do incidente em causa no Tribunal da Relação.

    4. Ressalvado o devido respeito, tal procedimento é inaceitável e viola, de forma ostensiva, o princípio do juiz legal ou juiz natural, que decorre do art. 32º, n.º 9, da CRP e do próprio estatuto de uma magistratura independente e inamovível.

    5. A propósito, veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira: O princípio do juiz legal consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento (...). Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em 1ª instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais) (...). A doutrina costuma salientar que o princípio do juiz legal comporta várias dimensões fundamentais: a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (...) c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para afixação [sic; no original lê-se: ?a fixação?] de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o princípio da administração judicial (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3a ed., pág. 207; no mesmo sentido, cfr. ainda Figueiredo Dias, RLJ, 111º, 83 e ss.).

    6. Os Requerentes têm o direito a que o seu incidente seja julgado pelo juiz que o tiver de ser de acordo com as regras previamente fixadas à data da sua apresentação no Tribunal da Relação de Lisboa.

    7. Não o fazem por preferir este ou aquele juiz, mas apenas porque querem garantir que o princípio do juiz natural ? essencial para a transparência do exercício da justiça ? seja respeitado; de resto, foi o próprio STJ a recentemente declarar que: ?no âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou como princípio sagrado e inalienável o do juiz natural? (cfr . Acórdão de 5/4/2000, SASTJ n.º 40, 44).

    8. No caso presente, em que o juiz que resulte da distribuição, estando de férias, será substituído por um juiz de turno, a situação ainda é mais grave, porque, estando a escala dos juízes de turno previamente fixada, a escolha do dia da distribuição implica o conhecimento do juiz ou juízes que estão de turno, o que deve exigir que ainda seja mais rigoroso quanto à necessidade de respeitar os critérios pré-definidos para a distribuição.

    9. Não pode, pois, haver qualquer dúvida quanto ao facto de a distribuição em apreço violar as regras procedimentais em vigor à data da apresentação do incidente no Tribunal da Relação, ofendendo o princípio constitucional do juiz natural, o que gera uma nulidade, ou, ao menos, uma irregularidade processual, só hoje conhecida, que ora vai arguida.

    10. Por cautela, vai igualmente arguida a inconstitucionalidade do entendimento dado ao art. 223º, nºs 1 e 2, do C.P.C., quando aplicável, por força do art. 4º do C.P.P., ao processo penal, ou de quaisquer outras regras que venham a ser invocadas, no sentido de que o Presidente da Relação pode alterar regras de distribuição previamente fixadas, depois da apresentação na Relação de peça processual que a ela deva ser submetida, por violação ostensiva do princípio constitucional do juiz legal ou juiz natural; por cautela, para a hipótese de já estar proferida decisão final, vai igualmente arguida a inconstitucionalidade do entendimento dado à parte final do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável por força do art. 4º do C.P.C., no sentido de que tal nulidade não pode ser arguida se já tiver sido proferida decisão final, quando entre a prática da nulidade e a decisão final correr prazo inferior ao mínimo de dez dias previsto no art. 105º, n.º 1, do C.P.P. (ou quando muito ao prazo de três dias previsto no art. 123º, n.º 1, do C.P.P.), por violação dos princípios do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva e do juiz legal ou juiz natural, como tal consagrados nos arts. 20º, n.ºs 1 e 4, e 32º, n.º 9, da CRP.?

    Por despacho datado de 8 de Setembro de 2003, o Ex.mº Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa veio desatender esta reclamação, dizendo:

    ?O princípio do juiz natural satisfaz-se com a distribuição aleatória (ou sorteio) entre juízes. E quanto ao provimento n.º 3/2003 ? que é um documento interno que nem tem de ser conhecido pelas partes ? traduz uma mera orientação interna que pode ser revogada a todo o tempo. Não houve, pois, qualquer nulidade da distribuição?.

    AUTONUM 2.tc "2. Recursos para o STJ e para o TC e admissão deste último"Inconformados, os reclamantes interpuseram recurso deste despacho para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 399º e 432º, alínea a) do Código de Processo Penal, e, por cautela, também para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.ºs 1, alínea b), e 4, in fine, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional.

    Neste requerimento, os recorrentes concluíram:

    ?

    1. Os Recorrentes, tendo ? a 4 de Setembro ? tomado conhecimento pela comunicação social de que teria sido realizada ? a 3 de Setembro ? uma distribuição extraordinária relativamente ao incidente de recusa de juiz que apresentaram relativamente ao Juiz de Instrução (?), com referência ao processo do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal NUIPC 1718/02.9JDLSB, apresentaram, nos termos do art. 210º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi do art. 4° do C.P.P., uma reclamação dessa distribuição, o que fizeram por telecópia de 4 de Setembro, a que se seguiu a entrega da respectiva cópia de segurança a 8 de Setembro.

    2. Os autos de incidente de recusa deram entrada no Tribunal da Relação já depois da distribuição efectuada, para os processos crime, na segunda-feira, dia 1 de Setembro, tendo sido objecto de uma distribuição extraordinária, que ocorreu a 3 de Setembro.

    3. Os turnos de juízes escalados para as férias judiciais, no Tribunal da Relação, estavam previamente fixados, sendo certo que os juízes escalados para o período situado entre 3 e 5 de Setembro não eram os mesmos que aqueles que se encontravam escalados para o período iniciado na segunda-feira seguinte, ou seja, 8 de Setembro.

    4. Nos tribunais superiores, o art. 223º, n.º 1, do C.P.C. limita-se a estabelecer que a distribuição se faz na primeira sessão seguinte à apresentação, o que tem implicado a existência de regras regulamentares próprias para cada um desses tribunais superiores, nos termos consentidos pelo n.º 2 desse mesmo art. 223º, que estipula que essa distribuição é feita conforme ?determinação do presidente?.

    5. No caso da Relação de Lisboa, através do Provimento n.º 3/2003, de 24 de Janeiro, o Senhor Presidente da Relação, no que ora está em causa, estabeleceu a seguinte regra: Nas férias judiciais os processos crime de natureza urgente serão também distribuídos às segundas-feiras ou no primeiro dia útil seguinte, se aquelas o não forem. Exceptuam-se os processos em que há prazos de 48 horas para apresentação ao Juiz e que correm no Tribunal da Relação (extradições, internamentos compulsivos), que serão distribuídos logo que derem entrada neste Tribunal.

    6. Tanto quanto é do conhecimento dos Requerentes, essa regra foi sempre praticada durante as últimas férias judiciais, até que no dia 3 de Setembro, quarta-feira, foi realizada uma distribuição que abrangeu o incidente em causa, o qual obviamente não cabe no âmbito da excepção acima referida.

    7. E foi tal regra aplicada em relação aos processos urgentes dos recursos interpostos pelos arguidos dos despachos que lhes aplicaram a medida de coacção da prisão preventiva.

    8. Assim sendo, a distribuição que ocorreu no dia 3 de Setembro contrariou as regras procedimentais em vigor aquando da apresentação do incidente em causa no Tribunal da Relação, ofendendo o princípio constitucional do juiz...

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