Acórdão nº 862/22 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Dezembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução21 de Dezembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 862/2022

Processo n.º 691/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre — Juízo de Competência Genérica de Fronteira, o Ministério Público interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal em 2 de junho de 2022.

2. No âmbito do inquérito nos presentes autos, foi proferido despacho, a 2 de dezembro de 2021, admitindo a tomada de declarações à ofendida para memória futura (fls. 17). A tomada de declarações para memória futura ocorreu em 10 de maio de 2021, presidida pela Juíza de Direito titular do Juízo de Competência Genérica de Fronteira, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, que havia proferido o referido despacho (fls. 30).

Deduzida a acusação, foram os autos distribuídos para julgamento em processo comum perante tribunal singular à mesma Juíza de Direito que havia presidido à tomada de declarações à ofendida.

Foi então proferido despacho, ora recorrido, que recusou aplicar «a norma contida no enunciado normativo do artigo 40.º do Código de Processo Penal, com excepção da parte em que reproduz o regime anteriormente em vigor: Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º; b) Presidido a debate instrutório, c) Participado cm julgamento anterior; d ) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior. e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta», considerando por isso que «inexiste qualquer impedimento para a tramitação dos presentes autos neste juízo, o que se declara» (fls. 152-153).

3. O Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls. 156).

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações pugnando pela procedência do recurso, que concluiu nos seguintes termos:

«V. CONCLUSÕES

1. Como apontamento preambular às nossas alegações, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, a despeito da anunciada iniciativa de proposta de alteração legislativa apresentada pelo Governo ao Parlamento – e partindo do pressuposto que viesse a ser reposta a versão do art. 40.º do CPP anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 – subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021.

2. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional – mesmo que, durante a sua pendência, venha a ser aprovada nova Lei.

3. No excurso subsequente, tentaremos demonstrar se, e em que medida, o juízo sobre a validade constitucional da norma supra enunciada pode ser confirmado, antecipando-se, desde já, que não se subscreve o juízo de inconstitucionalidade emitido pela M.ma juíza a quo.

4. A evolução do conteúdo do art.º 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual” tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, PEDRO SOARES DE ALBERGARIA, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art.º 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

5. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contra-ciclo” com anterior tendência.

6. O recorte atual do art.º 40.º do CPP, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, ficou com a seguinte redação (em itálico as alterações relativamente ao regime pretérito):

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.”

7. Importa traçar, ainda que perfunctoriamente, o enquadramento jurídico-constitucional dos parâmetros mobilizados para o juízo que baseou o despacho recorrido.

8. O direito à tutela jurisdicional efetiva, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (e densificado no seu n.º 4), consagra, essencialmente, o direito de os particulares recorrerem aos tribunais a fim de obterem, em prazo razoável, uma decisão judicial, com força de caso julgado, que incida sobre as suas pretensões, desde que apresentadas de forma procedimentalmente adequada e, bem assim, o direito a obter a execução de tais decisões.

9. Encontramo-nos perante um complexo de direitos, constitucionalmente sustentados, garantes, individual e institucionalmente, da obtenção, por parte dos tribunais, da adequada proteção jurisdicional das suas legítimas pretensões. Ou seja, o direito à tutela jurisdicional efetiva garante que, numa ótica instrumental, processual e procedimental, se encontra constitucionalmente assegurada aos particulares uma adequada resposta jurisdicional às suas legítimas pretensões, regularmente suscitadas, independentemente da sua valia substantiva.

10. No caso que agora nos ocupa, não se vislumbra que a alteração legislativa precipitada na Lei n.º 94/2021, ao art. 40.º do CPP, se configure, em qualquer medida, como uma violação dessas garantias de acesso aos tribunais a fim de obter uma decisão jurisdicional incidente sobre pretensões processualmente deduzidas, designadamente quanto à presidência da tomada de declarações para memória futura (de ofendidos no processo), determinando, assim, o impedimento de o mesmo juiz intervir em julgamento nesse mesmo processo.

11. Esse óbice a uma “estabilidade” do tribunal não parece decorrer diretamente de qualquer violação dos direitos instrumentais de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva dos sujeitos processuais, plasmados no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com o disposto no n.º 4 da mesma disposição, resultando, antes, da legítima opção legislativa promotora de uma intensificação dos motivos de impedimentos do tribunal por anterior participação no processo.

12. Assim, a exasperação dos motivos de impedimento do juiz, pelo legislador, podendo reconduzir-se a soluções nem sempre sistemicamente coerentes ou lógicas, podem não ser materialmente inconstitucionais, desde que se encontrem justificações para a sua consagração, ou seja, que não se crie uma restrição injustificada ao princípio do juiz natural.

13. Por seu turno, o princípio do juiz natural, ou juiz legal, consiste essencialmente na predeterminação do tribunal competente para o julgamento, «proibindo a criação de tribunais ad hoc ou a atribuição da competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime», como anotam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Ed revista, Coimbra Ed, Coimbra, 1993, p. 205) e, como ensinam os mesmos Autores, prosseguindo, «Juiz legal é não apenas o juiz da sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão (princípio dos juízes legais). A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os tribunais coletivos.

A doutrina costuma salientar que o princípio do JUIZ legal comporta varias dimensões fundamentais: (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes) chamados a proferir decisões num caso concreto estejam previamente individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos...

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