Acórdão nº 536/22 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Agosto de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução11 de Agosto de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 536/2022

Processo n.º 586/2022

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. Interpõe o presente recurso o Ex.mo Magistrado do Ministério Público (doravante, também referido como recorrente), ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), tendo determinado tal impugnação, nessa concreta referência legitimadora do recurso de constitucionalidade, a decisão de recusa adiante transcrita no item 1.1.3.. São, pois, as incidências processuais conducentes à intervenção do Tribunal Constitucional que seguidamente relataremos.

1.1. No processo de inquérito n.º 567/20.7T9PTG, que correu termos na comarca de Portalegre e no qual são arguidos A. e B., foi proferido despacho de acusação pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida.

1.1.1. Os arguidos requereram a abertura de instrução, após o que os autos foram remetidos ao juiz titular do processo com competência em matéria de instrução. Este juiz, todavia, por despacho de 04/05/2022, declarou-se impedido, nos termos do artigo 40.º do Código de Processo Penal (CPP), por ter emitido mandados de busca domiciliária e reexaminado a medida de coação de prisão preventiva, durante o inquérito.

1.1.2. Remetidos os autos à (primeira) juíza substituta, declarou-se esta magistrada igualmente impedida, por despacho de 09/05/2022, por ter aplicado a medida de prisão preventiva em primeiro interrogatório judicial.

1.1.3. Remetidos os autos à (segunda) juíza substituta, por esta foi proferido despacho – que constitui a decisão recorrida –, determinando a remessa dos autos ao juiz referido em 1.1.1., supra. Tal decisão recusa a aplicação do disposto no artigo 40.º do CPP, nas interpretações em que se basearam os impedimentos sucessivamente declarados pelo juízes titular e substituta, conforme indicado nos itens anteriores.

1.2. Desta decisão, como atrás se referiu, recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, indicando como objeto do recurso a norma contida no “[…] artigo 40.º do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, na interpretação de que a decisão do juiz de instrução sobre a emissão de mandados de busca domiciliária, reexame da medida de coação de prisão preventiva e a intervenção em primeiro interrogatório de arguido detido em que foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva, em sede de inquérito, determine o seu impedimento para dirigir a instrução”.

1.2.1. O recurso foi admitido no tribunal recorrido.

1.2.2. O recorrente apresentou alegações, no sentido da procedência do recurso, rematando tal peça com as seguintes conclusões:

“[…]

1. A M.ma juíza de direito a quo faz assentar a consideração da inconstitucionalidade da norma supra apontada, na violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, enquanto princípio negativamente implicado na revisão operada pela Lei n.º 94/2021 à redação do art. 40.º do CPP.

2. Dentro do conteúdo do direito à tutela jurisdicional efetiva, inscrevem-se os princípios do juiz natural, da especialização e da decisão em prazo útil.

3. Invoca, em seguida, que o regime que o art. 40.º do CPP passou a prever «(…) não foi aprovado no seio de uma organização judiciária uniforme no país, onde todas as Comarcas disponham de meios para fazer face à proliferação de impedimentos de juízes que esta solução origina. Com efeito, tal regime deve ser valorado em conjugação com outras normas em vigor no ordenamento jurídico, que decorrem de igual fonte normativa, dotadas de igual valor jurídico, designadamente as da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08) e do Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Decreto-lei n.º 49/2014, de 27-03)».

4. Aponta a irracionalidade e distorção sistémica que a solução de alteração legislativa implica na Comarca de Portalegre, na qual, exemplifica que «(i) a prática de qualquer ato de inquérito atribuído ao juiz de instrução impede a realização de julgamento ou presidir a debate instrutório; (ii) na comarca de Portalegre, o Juízo Local Criminal de Elvas é, nos termos da LOSJ, composto por apenas um juiz, ao qual está atribuída a prática de atos de inquérito/instrução e julgamento. Neste caso, o JLCriminal de Elvas caso pratique qualquer ato jurisdicional de inquérito fica imediatamente impedido para (i) a instrução e (ii) o julgamento».

5. Por fim, imputa à novel solução normativa a afronta ao princípio da igualdade, expressando a argumentação de que a mesma «(…) gera uma compressão injustificada do princípio da igualdade, por implicar uma restrição arbitrária de princípios constitucionais que são fundamento do Estado de Direito nas comarcas onde o número de juízos e a natureza da sua especialização não permitam soluções semelhantes às dos grandes centros urbanos – os únicos que, evidentemente, estiveram na mente do legislador. Sendo certo que a existência de populações em menor número justifica uma limitação na criação de juízos, tal acaso demográfico não permite certamente concluir que tais populações merecem garantias inferiores do ponto de vista constitucional».

6. Como apontamentos preambulares às nossas alegações, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, a despeito da anunciada iniciativa de proposta de alteração legislativa apresentada pelo Governo ao Parlamento – e partindo do pressuposto que viesse a ser reposta a versão do art. 40.º do CPP anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 – subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021. Manifestando as nossas dúvidas quanto à legitimidade de uma eventual disposição legal futura pretender disciplinar os efeitos transitórios pretéritos da (atual) versão do art. 40.º do CPP, parece-nos, s.m.o., que só uma apreciação em sede de fiscalização sucessiva de constitucionalidade poderia satisfatoriamente dar solução à situação entretanto gerada.

7. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional – mesmo que, durante a sua pendência, venha a ser aprovada nova Lei.

8. Por outro lado, ainda, deve sublinhar-se que, salvo o devido respeito, parece existir, na economia do despacho recorrido alguma (indevida) confusão entre (in)competência e ‘impedimento’ do Juízo Local Criminal (de Elvas) para «ulterior tramitação dos autos».

9. Na verdade, o Juízo Local Criminal em questão continua(rá) a deter competência para a causa, o que é, obviamente, distinto da competência do juiz para a tramitação do processo, relativamente ao qual se verifica um impedimento do juiz titular, ou de outro(s) substituto(s) deste.

10. A evolução do conteúdo do art. 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual» tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, Pedro Soares de Albergaria, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

11. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contraciclo” com anterior tendência.

12. O seu recorte atual, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, emerge a partir da Proposta de Lei 90/XIV, do Governo, e do Projeto de Lei 876/XIV (do PSD).

13. A primeira mantinha intocadas as alíneas a), b), d) e e) do n.º 1 do art. 40.º, aditando-lhe um número 2 nos termos do qual “[n]enhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior”; a mais disso, na alínea c) do n.º 1, sobre ter participado em julgamento anterior, estipulava um impedimento decorrente de o juiz ter participado em tentativa (frustrada) de celebração de acordo sobre a pena aplicável, que, no quadro da proposta sobre «negociação de penas» no âmbito da “Estratégia Nacional Anti-Corrupção 2020-2024” vinha propugnada.

14. Por seu turno, o texto do projeto do partido social democrata estendeu literalmente os fundamentos do impedimento, na alínea a) do n.º 1 do art. 40.º, a todo o ato praticado, ordenado ou autorizado por juiz nos termos dos arts. 268.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alterou a alínea b) do n.º 1 daquele primeiro preceito em termos de o impedimento do juiz aí referido não ter como critério a presidência de debate instrutório, mas antes o ter “dirigido a instrução”, concorreu com o projeto do Governo a respeito do n.º 2 do art. 40.º (supra) e, enfim, aditou um n.º 3 nos termos do qual impedido fica o juiz de intervir “em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal”.

15. Na redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o art. 40.º do CPP ficou com a seguinte redação:

‘1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a...

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