Acórdão nº 216/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Afonso Patrão
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 216/2023

Processo n.º 636/2022

3ª Secção

Relator: Conselheiro Afonso Patrão

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre — Juízo Local Criminal de Portalegre, o Ministério Público interpôs o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do despacho proferido por aquele Tribunal em 12 de abril de 2022.

2. No âmbito do inquérito nos presentes autos, foram proferidos despachos, a 23 de novembro de 2021 (fls. 914) e a 17 de dezembro de 2021 (fls. 927), admitindo a constituição de assistentes. Ademais, foi proferido despacho, a 27 de janeiro de 2020, ordenando a realização de busca domiciliária (fls. 36).

Deduzida a acusação, foram os autos distribuídos, para julgamento, à mesma Juíza de Direito que havia admitido a constituição de assistente. Nesta sequência, foi proferido despacho, datado de 5 de abril de 2022 (fls. 1122-1124), que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º em conjugação com a alínea f) do n.º 1 do artigo 268.º, ambos do Código de Processo Penal (CPP) — na redação que lhe havia sido dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro —, concluiu pelo seu impedimento para intervir no processo.

Em face desta decisão, foram os autos redistribuídos à mesma Juíza de Direito que havia ordenado a realização de busca domiciliária. Nessa sequência, foi proferido despacho, datado de 17 de maio de 2022 (fls. 1125), que, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 40.º em conjugação com a alínea c) do n.º 1 do artigo 269.º, ambos do CPP — na redação que lhe havia sido dada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, concluindo pelo seu impedimento para presidir à audiência de discussão e julgamento.

Tendo os autos sido novamente redistribuídos, foi proferido despacho (ora recorrido), datado de 25 de maio de 2022 (fls. 1126-1138), que decidiu recusar norma do artigo 40.º do CPP, com fundamento na sua inconstitucionalidade, concluindo assim que não existir fundamento legal para intervenção da Juíza de Direito para quem os autos foram redistribuídos:

«Atenta a ausência de coerência interna no regime enunciado que, como referido, atinge, pela ausência de critério razoável, o princípio da tutela jurisdicional efectiva, artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e o princípio da igualdade material, artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (sendo impossível discernir medidas que se justifiquem, para além das que já se mostravam em vigor, com fundamentação conhecida e séria), recusa-se a aplicação da norma contida no enunciado normativo do artigo 40.º do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, julgando-se a mesma inconstitucional, com excepção da parte em que reproduz o regime anteriormente em vigor: «Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: a) Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200.º a 202.º; b) Presidido a debate instrutória; c) Participado em julgamento anterior; d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior, e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta».

Face ao exposto, inexiste fundamento para a intervenção da titular deste Juízo de Competência Genérica de Nisa no julgamento em causa, em regime de substituição legal, o que se declara.

Devolva os autos à Exma. Sra. Juíza titular do Juízo Local Criminal de Portalegre».

3. O Ministério Público interpôs então recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, que foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (fls. 1141).

Notificado para o efeito, o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu nos seguintes termos:

1. «A Senhora juíza de direito a quo faz assentar a consideração da inconstitucionalidade das normas supra indicadas em III. i) e III. ii) apontadas, na violação do direito à tutela jurisdicional efetiva e ao princípio da igualdade material, enquanto princípios negativamente implicados na revisão operada pela Lei n.º 94/2021 à redação do art. 40.º do CPP.

2. Invoca, em seguida, que o regime que o art. 40.º do CPP passou a prever «(…) não foi aprovado no seio de uma organização judiciária uniforme no país, onde todas as Comarcas disponham de meios para fazer face à proliferação de impedimentos de juízes que esta solução origina.

Com efeito, tal regime deve ser valorado em conjugação com outras normas em vigor no ordenamento jurídico, que decorrem de igual fonte normativa, dotadas de igual valor jurídico, designadamente as da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08) e do Regime Aplicável à Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Decreto-lei n.º 49/2014, de 27-03)».

3. Aponta a irracionalidade e distorção sistémica que a solução de alteração legislativa implica na Comarca de Portalegre.

4. Por fim, imputa à novel solução normativa a afronta ao princípio da igualdade.

5. Como apontamento preambular às nossas alegações, devemos dizer que a questão colocada no recurso reveste transcendente relevância prática e tem inequívoco impacto sistémico no funcionamento do aparelho judiciário penal, uma vez que, a despeito da anunciada iniciativa de proposta de alteração legislativa apresentada pelo Governo ao Parlamento – e partindo do pressuposto que viesse a ser reposta a versão do art. 40.º do CPP anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21-12 – subsistirão sempre como controversos os efeitos das situações que ocorreram durante a vigência da versão do preceito conferida pela Lei n.º 94/2021. Manifestando as nossas dúvidas quanto à legitimidade de uma eventual disposição legal futura pretender disciplinar os efeitos transitórios pretéritos da (atual) versão do art. 40.º do CPP, parece-nos, s.m.o., que só uma apreciação em sede de fiscalização sucessiva de constitucionalidade poderia satisfatoriamente dar solução à situação entretanto gerada.

6. Donde, a manutenção do interesse e utilidade no conhecimento do objeto do presente recurso pelo Tribunal Constitucional – mesmo que, durante a sua pendência, venha a ser aprovada nova Lei.

7. A evolução do conteúdo do art. 40.º do CPP, norma matricial no que concerne à tutela da “imparcialidade endoprocessual» tem registado uma tendência de sucessiva ampliação do seu círculo normativo (assim, PEDRO SOARES DE ALBERGARIA, «Os impedimentos entre a imparcialidade do juiz e funcionalidade do sistema. Notas sobre a recente alteração do art. 40.º CPP», Julgar Online, março de 2022, p. 2).

8. Aos sucessivos alargamentos dos fundamentos de impedimentos – soluções até agora consagradas, algumas impulsionadas por jurisprudência do Tribunal Constitucional, estabilizaram-se pelo decurso de 8 anos de vigência (desde 2013), podendo-se-lhes creditar uma aceitação doutrinal e jurisprudencial, se não unânime, ao menos generalizada, mas pacificada –, veio o legislador, através da Lei n.º 94/2021, proceder não apenas a uma alteração do regime, mas ao que com propriedade se poderá classificar de inversão dele, em “contra-ciclo” com anterior tendência.

9. O seu recorte atual, fixado pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, emerge a partir da Proposta de Lei 90/XIV, do Governo, e do Projeto de Lei 876/XIV (do PSD).

10. Na redação conferida pela Lei n.º 94/2021, de 21-12, o art. 40.º do CPP ficou com a seguinte redação (em itálico as alterações relativamente ao regime pretérito):

“1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Praticado, ordenado ou autorizado ato previsto no n.º 1 do artigo 268.º ou no n.º 1 do artigo 269.º;

b) Dirigido a instrução;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior;

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 – Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos da alínea a) ou e) do número anterior.

3 – Nenhum juiz pode intervir em processo que tenha tido origem em certidão por si mandada extrair noutro processo pelos crimes previstos nos artigos 359.º ou 360.º do Código Penal.”

11. Importa traçar, ainda que perfunctoriamente, o enquadramento jurídico-constitucional dos parâmetros mobilizados para o juízo que baseou o despacho recorrido.

12. O direito à tutela jurisdicional efetiva, proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (e densificado no seu n.º 4), consagra, essencialmente, o direito de os particulares recorrerem aos tribunais a fim de obterem, em prazo razoável, uma decisão judicial, com força de caso julgado, que incida sobre as suas pretensões, desde que apresentadas de forma procedimentalmente adequada e, bem assim, o direito a obter a execução de tais decisões.

13. Ou seja, encontramo-nos perante um complexo de direitos, constitucionalmente sustentados, garantes, individual e institucionalmente, da obtenção, por parte dos tribunais, da adequada proteção jurisdicional das suas legítimas pretensões. Ou seja, o direito à tutela jurisdicional efetiva garante que, numa...

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