Acórdão nº 96/04 de Tribunal Constitucional (Port, 11 de Fevereiro de 2004

Magistrado ResponsávelCons. Helena Brito
Data da Resolução11 de Fevereiro de 2004
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 96/04 Proc. n.º 423/03 1ª Secção

Relatora: Maria Helena Brito

Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

  1. Num recurso de agravo interposto por A. de um despacho que lhe indeferira o requerimento para penhora do vencimento da executada, por tal vencimento pouco exceder o valor do salário mínimo nacional, foi, em 11 de Dezembro de 2002, proferida a seguinte decisão pelo Desembargador Relator no Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 53 e v.º):

    ?[...]

    1. Decisão liminar do objecto do recurso, atenta a simplicidade da questão a decidir (arts. 705º e 749º do CPC):

    Entendemos, consoante decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n.º 318/99 ? processo n.º 855/98 ?, publicado no DR-II Série, n.º 247, de 22-10-99), «que a norma do art. 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até um terço quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, alínea a), e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa».

    Em crise não estando, «in casu», que a penhora, mesmo que tão só de um sexto (art. 824º n.º 2 do CPC) do salário da executada, ainda que o referido a fls. 28 seja o líquido, desaguaria no não ficar na disponibilidade daquele «quantum» de montante correspondente ao salário mínimo nacional, diga-se, sopesada a ideia que o salário mínimo contém em si, esta sendo a que o predito Ac. assinala ? a de «que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador» ?, censura não merece a decisão impugnada, a qual, isso sim, constitui paradigma de correcta solução do conflito de direitos a que, outrossim, alude o Ac. à colação já trazido, garantindo, como tal Aresto explanado, a «tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana ? vector axiológico estrutural da própria Constituição» ? cfr., no mesmo sentido, Ac. do TRC, de 30-04-02, in CJ ? Ano XXVII ? tomo II, pág. 39.

    Tudo visto, sem necessidade de considerandos outros, julga-se improcedente o agravo, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.?

  2. Tendo a então recorrente, bem como o Ministério Público, requerido que sobre a referida decisão recaísse acórdão da conferência, nos termos do artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil (fls. 55 e 57 e seguinte), veio o Tribunal da Relação de Lisboa, em 1 de Abril de 2003, a proferir o seguinte acórdão (fls. 69 e seguintes):

    ?[...]

  3. Pelos fundamentos expostos no despacho citado em I. c) e na decisão liminar do objecto do recurso, para os quais ora se remete nos termos permitidos pelo art. 713º n.º 5 do CPC (cfr. art. 749º do CPC), provimento não merece a pretensão recursória.

    Em qualquer circunstância, sempre se dirá:

    Os autos não evidenciam, minimamente, dispor o casal executado de réditos outros, que não o salário de B., para acudir ao seu sustento.

    Do processo não ressuma disporem os executados de outros bens penhoráveis, suficientes para satisfazer a dívida exequenda.

    Em tal contexto, mesmo líquido sendo o salário citado em I. b), é vítreo que o ordenar-se, que fosse, a penhora, tão-só, de 1/6 daquele (o patamar normal mínimo a que alude o art. 824º n.º 2 do CPC), desaguaria no ficar na disponibilidade da executada um rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional, o que seria, independentemente da natureza da dívida exequenda, inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que, como salientado no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 177/02, de 23-04-02, publicado na I Série-A, n.º 150, do DR, de 2-7-02, «resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição».

    1. Conclusão:

    Acorda-se, sem necessidade de considerandos outros, em, na esteira da decisão liminar do objecto do recurso, negar provimento ao agravo, confirmando-se, consequentemente, o despacho impugnado.

    [...].?

  4. Notificado deste acórdão, dele interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, atendendo a que tal acórdão ?não aplicou o art. 824º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do C.P.C. invocando a sua inconstitucionalidade por violação do art. 59º n.º 1, alínea a) e 2, bem como do art. 63º n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa? (fls. 76).

    O recurso foi admitido por despacho de fls. 77.

  5. Nas alegações que produziu (fls. 81 e seguintes), concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:

    ?1 ? Não é materialmente inconstitucional o regime constante do artigo 824º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à emergente do Decreto-Lei n.º 38/03) que se traduz em não considerar estabelecida a impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do trabalho, auferidos pelo executado que não disponha de outros bens penhoráveis, e que não excedam o montante do salário mínimo nacional.

    2 ? O interesse na sobrevivência condigna do executado é, neste caso, assegurado, em termos bastantes, pela possibilidade, outorgada ao juiz pelo n.º 3 de tal preceito legal, de realizar um juízo de ponderação casuístico e prudencial, articulando os interesses do exequente e executado, de acordo com a natureza do débito (que pode ser proveniente de uma obrigação alimentar ou radicar na aquisição de bens ou serviços destinados precisamente a salvaguardar a sobrevivência do executado, satisfazendo as suas necessidades básicas de alimentação e habitação) e as necessidades do devedor e seu agregado familiar.

    3 ? Não viola o princípio da igualdade a circunstância de ? quanto a pensões ou regalias sociais de valor não superior ao salário mínimo ? vigorar (por imposição da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional) um regime de impenhorabilidade total e «automática», já que tais rendimentos assentam ou pressupõem uma situação de particular debilidade, incapacidade ou fragilidade económica do executado, que se não verifica necessariamente quando estiverem em causa rendimentos profissionais, mesmo que de montante reduzido.

    4 ? Termos em que deverá proceder o presente recurso.?

    A recorrida não alegou (fls. 89).

    Cumpre apreciar.

    II

  6. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995/96), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado, privando o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.

    O artigo 824º do Código de Processo Civil tem a seguinte redacção, resultante do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro:

    ?Artigo 824º

    Bens parcialmente penhoráveis

  7. Não podem ser penhorados:

    1. Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado;

    2. Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.

  8. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo...

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