Acórdão nº 07B723 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 26 de Abril de 2007

Magistrado ResponsávelJOÃO BERNARDO
Data da Resolução26 de Abril de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I - AA, BB, CC e DD instauraram, em 1.2.2005, nas Varas Cíveis da Comarca do Porto, com distribuição à 2.ª Vara, acção declarativa de condenação com processo ordinário, contra: O Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto e a Santa Casa da Misericórdia do Porto; Alegaram, em resumo, que: As eleições dos corpos sociais da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em assembleia geral que teve lugar a 28.11.04, ficaram assinaladas por irregularidades que descrevem e que tornam o acto nulo, ou, no mínimo, anulável.

Além disso, a lista B, que venceu, integra pessoas várias que nunca poderiam ter sido candidatos, pelas razões que enunciam.

Pediram, em conformidade, que se declare a nulidade - ou, subsidiariamente, se decrete a anulação - da deliberação da Assembleia eleitoral de 28 de Novembro de 2004 da Santa Casa da Misericórdia do Porto e, consequentemente, do respectivo acto eleitoral.

II - Contestando, o Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Santa Casa da Misericórdia do Porto, veio arguir a incompetência do tribunal para apreciar e decidir acerca do objecto desta acção, cuja competência material entende caber ao Ordinário diocesano, nos termos e pelos fundamentos que aduziu.

Sobre esta excepção, pronunciaram-se os AA., pugnando pela sua improcedência, conforme resulta do seu requerimento de fls. 191.

III - Por decisão de fls. 222 a 230, foi julgada procedente tal excepção e, consequentemente, foram os RR. absolvidos da instância.

IV - Recorreram os autores e com êxito, porquanto o Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que afirme a competência material do tribunal recorrido.

V - Agrava para este Supremo Tribunal de Justiça agora a Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Conclui as alegações do seguinte modo: 1 - Por força do art. 1º do DL 38/2003, de 8 - 3, passou o art. 65º - A c) do CPC a ter a seguinte redacção: "Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para: (…) c) - As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos"….

2 - Essa ressalva inicial (também presente no art. 65º do mesmo CPC) resulta do reconhecimento de que o Direito Internacional convencional, uma vez recebido, tem força jurídica superior ao Direito interno ordinário no sistema jurídico português.

3 - Um "ordenamento jurídico autónomo", como é o caso do ordenamento jurídico canónico, distingue-se de um mero ramo de Direito na medida em que, ao contrário deste último, ele pressupõe a existência de mecanismos institucionalizados de interpretação e aplicação do Direito, maxime de tribunais próprios. É o que se passa ordenamento canónico como ordenamento jurídico próprio da Igreja Católica; e é ainda o que se passa, em alguns casos, com o ordenamento das organizações internacionais, como a ONU ou a UNESCO, etc… - - que têm jurisdição própria para os seus assuntos internos (vg. de nomeações, eleições, designação de cargos, etc…) ainda que projectem a sua actividade, por exemplo de benemerência e humanitárias, adentro de um Estado concreto.

4 - De acordo com a Concordata (quer a de 1940, quer a de 2004, tratado internacional celebrado entre a Santa Sé e o Estado Português), "A Igreja Católica em Portugal pode organizar-se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil" (art. 10º). Por outro lado, o Estado reconhece também à Igreja Católica o direito de aplicar o direito canónico às situações nele contempladas -nomeadamente quanto à organização das entidades com "personalidade jurídica canónica"-através de Jurisdição ou Órgãos Jurisdicionais próprios.

5 - Às Misericórdias, na medida em que cooperam com os fins da Administração pública, é-lhes reconhecida, no plano estadual, um relevante interesse público ou uma utilidade pública. E nessa medida, são-lhes reconhecidas também certas posições jurídicas especiais - com relevo nomeadamente para o direito administrativo. Correspondem, nessa medida, a "instituições particulares de solidariedade social", quanto a estas actividades e finalidades. Mas o seu substrato é, em especial - na maioria dos casos desses sujeitos, não quanto a todas as Misericórdias - uma "associação de fiéis canonicamente erigida".

6 - Ora, esta marca genética específica está bem expressa no Compromisso a que aderem os Irmãos e que corresponde aos estatutos da ora Ré, "Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto", aprovado pelos Irmãos e homologado canonicamente através do acto de aprovação dado em 15 de Junho pela autoridade diocesana, Ordinário da Diocese do Porto.

7 - E esta marca genética específica vem já de todos os "Compromissos" (Estatutos) anteriores, ao longo dos tempos. Para não ir mais longe, pode confrontar-se o anterior Compromisso de 1981, aprovado pelos Irmãos no tempo do Provedor ..., e depois homologado canonicamente através do decreto do Bispo do Porto Dom. ..., de 8 de Março de 1981, e onde se lê expressamente que: "Dom ... - Bispo do Porto - Fazemos saber que tendo - nos sido presentes e requerida a aprovação dos Estatutos, ou Compromisso, da Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto, em relação com a respectiva erecção canónica, HAVEMOS POR BEM: - Considerar erecta e confirmar em pessoa moral eclesiástica a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia, também designada por "Santa Casa da Misericórdia do Porto" ou, simplesmente,"Misericórdia do Porto"; - Aprovar os presentes Estatutos, em conformidade com o Direito Canónico aplicável, designadamente com os artigos 34º e 36º do Regulamento Geral das Associações Religiosas dos Fiéis, de 23 de Maio de 1937." 8 - No Artigo 1º do Compromisso consagra-se que "A Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia do Porto (…) é uma associação de fiéis, constituída na Ordem Jurídica Canónica, com o objectivo de satisfazer carências sociais e praticar actos de culto canónico, de harmonia com o espírito tradicional, enformado pelos princípios da doutrina e moral cristãs." E que "Em conformidade com a natureza que lhe advém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis, ressalvados os seu privilégios." Esta regra - sobre a definição da associação, sua natureza, inserção na Ordem Jurídica Canónica e sujeição (administrativo - canónica) ao Ordinário diocesano - do Compromisso actual, repete, ipsis verbis, idêntico artigo 1º dos Compromissos anteriores.

9 - E quanto ao seu objecto e finalidades, dispõe o art. 4º do Compromisso que "No campo social exercerá a sua acção através das 14 Obras de Misericórdia, tanto espirituais como corporais, interpretadas à luz da moderna Doutrina Social da Igreja e da cultura da solidariedade, desenvolvendo as actividades que constarem deste Compromisso e as mais que vierem a ser consideradas convenientes e, no sector especificamente religioso, sob a invocação de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a sua Padroeira, manterá o Culto e a acção pastoral nas suas Igrejas e Capelas".

10 - Ora, o ordenamento jurídico canónico contempla, quanto às "associações de fiéis", canonicamente erigidas, a distinção entre associações públicas e associações privadas. Isto é assim, expressamente, desde o Código de Direito Canónico de 1983 - que, na sequência do Concílio Vaticano II, criou a categoria de associações canónicas privadas, ao lado das (e única categoria que vinha de trás) associações de fiéis públicas. Ambas se regem constitutivamente (e quanto ao seu governo, vida interna, relações entre Irmãos, e com a autoridade de tutela eclesiástica, objectivos e finalidades) pelas regras do direito canónico. Tal como no Ordenamento jurídico estadual, da República portuguesa, também no Ordenamento Canónico há "associações de direito público" e "associações de direito privado". E estas últimas não deixam, por isso, de se reger também pelo Ordenamento à luz do qual são erigidas e que lhes traça o quadro da sua fisionomia e configuração.

11 - Resulta da Concordata a garantia de que (Artigo 2º nº4): "É reconhecida à Igreja Católica, aos seus fiéis e às pessoas jurídicas que se constituam nos termos do direito canónico a liberdade religiosa, nomeadamente nos domínios da consciência, culto, reunião, associação, expressão pública, ensino e acção caritativa"; e que (Artigo 10º): "A Igreja Católica em Portugal pode organizar - se livremente de harmonia com as normas do direito canónico e constituir, modificar e extinguir pessoas jurídicas canónicas a que o Estado reconhece personalidade jurídica civil." 12 - Em consonância com esta regra de direito internacional convencional, estabelece o art. 25º do DL 119/83, de 25 de Fevereiro, sob a epígrafe "Reconhecimento das instituições canonicamente erectas" que "A personalidade jurídica das instituições canonicamente erectas resulta da simples participação escrita da erecção canónica feita pelo bispo da diocese onde tiverem a sua sede, ou por seu legítimo representante, aos serviços competentes para a tutela das mesmas instituições". E no art. 46º nº 1 que "os estatutos das instituições referidas no artigo anterior e respectivas alterações não carecem de escritura pública, mas devem ser aprovados e autenticados pela autoridade eclesiástica competente".

13 - Consagra-se ainda naquela convenção de direito internacional (artigo 2º nº 1 da Concordata) que "A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica o direito de exercer a sua missão apostólica e garante o exercício público e livre das suas actividades, nomeadamente as...

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