Acórdão nº 208/11.3TBHRT.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Dezembro de 2019

Magistrado ResponsávelABRANTES GERALDES
Data da Resolução05 de Dezembro de 2019
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I – A DIOCESE de LEIRIA-FÁTIMA e a PIA UNIÃO das ESCRAVAS do DIVINO CORAÇÃO de JESUS instauraram ação declarativa com processo comum contra AA e BB (com o nome religioso de “Irmã CC”).

Alegaram que a 2ª A., Pia União das Escravas do Divino Coração de Jesus, é uma associação pública de fiéis, ficando sujeita à vigilância e autoridade do Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, nos termos do Cód. de Direito Canónico de 1983.

A 2ª R., BB vinha exercendo, desde 1991, as funções de Superiora e representante da Pia União.

Em 9-11-05, nessa qualidade, a 2ª R., munida de uma credencial emitida em 28-10-05 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima, outorgou a doação de um prédio urbano de que a Pia União era proprietária, a favor do 1º R., AA, seu sobrinho.

Tratava-se de um bem de natureza eclesiástica, na medida em que pertencia a uma associação pública de fiéis, pelo que tal doação carecia de autorização escrita do Bispo da Diocese, a qual deveria ter sido precedida obrigatoriamente da audição e do parecer vinculativo do Conselho para os Assuntos Económicos (CAE) e do Colégio de Consultores (CS), sendo insuficiente a credencial que foi apresentada no ato.

Mais alegaram que, incidindo a doação sobre um bem imóvel de elevado valor, o facto de o respetivo beneficiário ser parente (de 3º grau) da referida Superiora, tornava obrigatória uma licença especial do Bispo da Diocese dada por escrito, nos termos do cân. 1298º do CDC de 1983, a qual não existiu.

Assim, com fundamento em que os atos:

  1. Não foram precedidos da audição e dos pareceres do CAE e do CS da Diocese de Leiria-Fátima, os quais seriam obrigatórios, pois estava em causa a alienação de um bem imóvel de que era proprietária a Pia União, qualificada como associação pública de fiéis, e que b) O donatário é sobrinho da Superiora da Pia União, sem que na licença que foi subscrita pelo Bispo de Leiria-Fátima se indicasse a existência dessa relação de parentesco, como o exigia o cân. 1298º do CDC de 1983, Pediram as AA. que fosse: a) Declarada nula ou ineficaz a credencial que foi emitida em …-10-2005 pelo anterior Bispo da Diocese de Leiria-Fátima; b) Declarada nula a doação do prédio urbano e do respetivo recheio que foi outorgada por escritura pública; c) Declarada a nulidade dos atos de registo subsequentes a tal doação, ordenando-se o seu cancelamento.

    Os RR. contestaram defendendo a ilegitimidade da 1ª A., Diocese, por falta de interesse em demandar, na medida em que, na hipótese de procedência da ação, a única beneficiária seria a 2ª A., Pia União, e porque, independentemente da natureza pública ou privada da Pia União, a A. Diocese não é sujeito da relação material controvertida.

    Invocaram ainda a falta de poderes de representação da 2ª A., Pia União, alegando que esta é uma associação privada de fiéis, razão pela qual a Diocese de Leiria-Fátima não pode impor ou escolher quem exerça o cargo de Superiora, a qual, segundo os estatutos da Pia União, será livremente designada pelos fiéis, sem estar sujeita a confirmação, que apenas está prevista para as associações públicas de fiéis. Por esse motivo, o decreto episcopal de …-7-2008 que nomeou um comissário para a Pia União, assim como os subsequentes decretos que o confirmaram são nulos.

    Por impugnação, alegaram ainda que, sendo a 2ª A., Pia União, uma associação privada de fiéis, são válidos os atos praticados pela sua Superiora, ora 2ª R., uma vez que se integravam no exercício de poderes de representação, não carecendo de qualquer autorização especial para dispor do seu património.

    Mas ainda que fosse necessária a autorização para a prática do referido ato, o Bispo de Leiria-Fátima, ao emitir a credencial que foi apresentada na escritura pública de doação do bem imóvel, autorizou essa doação.

    Ademais, a preterição do parecer do CAE e do CS da Diocese não acarreta a nulidade da credencial, tornando o ato meramente anulável, tendo transcorrido já o prazo para a sua invocação quando a ação foi instaurada.

    Por outro lado, não sendo os bens da Pia União, bens eclesiásticos, mas particulares, o ato impugnado é válido.

    Os AA. replicaram, pugnando pela improcedência das exceções suscitadas.

    Foi proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade da 1ª A. Diocese de Leiria-Fátima e se considerou regular a representação judiciária da 2ª A. Pia União, a qual, para o efeito, foi qualificada como associação pública de fiéis.

    Os RR. interpuseram recurso de apelação do despacho-saneador, na parte em que reconheceu a legitimidade da 1ª A. e a regularidade da representação judiciária da 2ª A. (fls. 398 e ss.), depois de qualificar a Pia União como associação pública de fiéis. Mas, apesar de se tratar de decisão cuja impugnação deveria ter sido diferida para o recurso interposto da sentença final, nos termos do que então dispunha o art. 691º do CPC de 1961, o Mº Juiz da 1ª instância proferiu despacho de admissão de tal recurso, embora com subida a final (despacho de fls. 677).

    Realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual a 1ª instância, assumindo a qualificação da Pia União como associação privada de fiéis, julgou improcedente a ação, absolvendo os RR. dos pedidos.

    Os AA. interpuseram recurso de apelação da sentença e a Relação, depois de acolher a tese defendida pelas AA. no sentido da qualificação da Pia União como associação pública de fiéis:

  2. Julgou improcedente a apelação interlocutória que anteriormente fora interposta pelos RR. relativamente ao despacho saneador que apreciara as exceções de ilegitimidade da 1ª A. e de irregularidade de representação da 2ª A.; b) Confirmou a sentença da 1ª instância que rejeitou a declaração de invalidade da credencial e da doação sustentada na falta de audição e do parecer do CAE e do CS antes de ter sido subscrita a licença pelo anterior Bispo de Leiria-Fátima que foi apresentada aquando da outorga da escritura pública de doação e considerou que a referida licença correspondia à autorização episcopal exigida pelo cân. 1291º do CDC de 1983; c) Declarou a invalidade da doação (e dos subsequentes atos de registo predial), com fundamento em que, contrariando o que dispõe o cân. 1298º do CDC de 1983, o ato de alienação beneficiava um sobrinho da Superiora da Pia União, estando submetido a uma licença especial do Bispo da Diocese, exigência que a referida credencial não cumpria, uma vez que nela se não fizera qualquer menção à relação de parentesco existente entre a Superiora e representante da Pia União (2ª R.) e o donatário (1º R.).

  3. Considerou que a invocação da invalidade da doação com tal fundamento não estava sujeita a prazo de caducidade.

    Assim, com fundamento na anterior al. c): - Julgou procedente a apelação, na parte em que a sentença absolveu os RR. dos pedidos de declaração de nulidade da escritura de doação e de nulidade do correspondente registo relativo a tal doação, substituindo-a pela: - Declaração de invalidade da escritura pública de doação outorgada em 9-11-05 (lavrada a fls. 10 e ss. do livro 672-A do extinto Cart. Not. de …, cujo acervo documental foi transferido para o Cart. Notarial de DD), pela qual a 2ª R., BB, em representação da 2ª A., Pia União, declarou doar ao 1º R., AA, o prédio urbano (incluindo todo o seu recheio) destinado a habitação, composto de rés-do-chão e 1º andar, com superfície coberta de 354 m2 e quintal com área de 246 m2, sito na R. … nº …, na cidade da …, freguesia de …, descrito na CRP da … sob o nº 274 da freguesia de … e inscrito na respetiva matriz sob o art. 283º; - Declaração de nulidade do registo relativo a essa aquisição a favor do 1º R. e cancelamento desse registo constante da apresentação nº 18 de 2006/01/25, feita no prédio descrito na CRP da … sob o nº 2…/1…5 da freguesia … (…).

    Foi interposto recurso de revista por parte de ambos os RR., formulando as seguintes conclusões:

    1. O presente recurso incide sobre os pontos 7.

      e 9.

      do acórdão da Relação e sobre a sua decisão, na parte em que julgou procedente a apelação, o que implica o debate sobre as seguintes questões fundamentais: - A natureza da A. Pia União, que pela Relação foi qualificada como uma associação pública de fiéis, quando, como julgou a 1ª instância, se trata de uma associação privada de fiéis; - A nulidade ou invalidade da escritura de doação e do consequente registo.

      B) Tendo sido pedida a declaração de nulidade de uma escritura pública, o acórdão em revista é nulo, por condenar em objeto diverso do pedido, nos termos da al. e) do nº 1 do art. 615º do CPC, na medida em que declara a “invalidade” termo que, referido ao negócio jurídico, abrange a nulidade e a anulabilidade, com regimes distintos quanto aos fundamentos e ao prazo de arguição.

      C) O acórdão é, ainda, nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC, ao decidir que a credencial emitida pelo Bispo da Diocese se presume válida, mas que, na medida em que habilita para a doação de imóvel a familiar da representante da doadora (Pia União), tal presunção deixaria de ter lugar, sem que haja qualquer razão ou cominação na lei canónica ou civil que imponha solução diversa da presunção de validade.

      D) Não cominando a lei, civil ou canónica, com a nulidade a preterição de formalidades relativas a ato administrativo da autoridade eclesiástica – o Bispo Diocesano – não há fundamento para a declaração de nulidade da escritura de doação, mesmo que a Pia União fosse considerada uma associação pública de fiéis, o que só por cautela se equaciona.

      E) Como o acórdão recorrido dá nota, existe múltipla jurisprudência contraditória acerca da natureza da Pia União, com acórdãos de tribunais superiores (Relações de Lisboa e de Coimbra e Supremo Tribunal de Justiça) a decidirem de maneira diferente e divergente. Daí que seja conveniente e até necessário que presente recurso seja julgado pelo Pleno das Secções Civis, ao abrigo do art. 686º, nº 1, do CPC.

      F) O acórdão recorrido sustenta o entendimento de que a...

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