Acórdão nº 646/09.1TBFND.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 17 de Maio de 2011

Magistrado ResponsávelJUDITE PIRES
Data da Resolução17 de Maio de 2011
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, e face à simplicidade da questão suscitada, vai proferir-se decisão sumária (artigos 700º, nº1, alínea c) e 705º do Código de Processo Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8).

I.RELATÓRIO 1. Os Autores, na qualidade de irmãos da Santa Casa da Misericórdia do ..., intentaram acção declarativa, sob a forma ordinária, contra a Ré Santa Casa da Misericórdia do ..., pedindo que seja declarada nula e de nenhum efeito a destituição dos corpos gerentes eleitos para o triénio de 2005/2007 e, em consequência, ser declarada nula e de nenhum efeito a nomeação da Comissão Administrativa e todos os actos por si praticados até à Assembleia-Geral de 29 de Março de 2009; bem como ser declarada nula e de nenhum efeito a deliberação eleitoral da Assembleia-Geral da Ré de 29 de Março de 2009 ou, subsidiariamente, se assim não se entender, ser anulada a aludida deliberação.

Citada para contestar, a Ré Santa Casa da Misericórdia do ... veio, além de impugnar factos alegados pelos Autores, deduzir a excepção de incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial do Fundão para conhecer da acção proposta.

Alega, para tal, e relacionado com a qualificação jurídica da Ré, que esta foi criada no ano 1516, e é uma instituição canonicamente erecta e como tal devidamente registada, tendo sido constituída ao abrigo dos cânones 298 e 299 do Código Canónico, sendo que a Ré é uma associação de fiéis que obteve da autoridade eclesiástica a erecção nos termos do cânone 301 do Código Canónico, apresentando-se como uma associação pública de direito canónico.

Por reporte ao relacionamento entre a República Portuguesa e a Santa Sé invoca que em 1940 o Estado Português assinou com a Santa Sé uma solene Convenção que ficou conhecida sob o título de Concordata, sendo que ambas as entidades decidiram assinar, em 2004, uma nova solene Convenção, que manteve o nome de Concordata e que entrou em vigor no dia 13 de Maio do ano de 2004; na Concordata de 1940 o artigo 4º expressamente consignava: “as associações ou organizações a que se refere o artigo anterior, podem adquirir bens e dispor deles nos mesmos termos por que o podem fazer, segundo a legislação vigente, as outras pessoas morais perpétuas, e administram-se livremente sob a vigilância e fiscalização da competente Autoridade eclesiástica. Se porém, além de fins religiosos, se propuserem também fins de assistência e beneficência em cumprimento de deveres estatutários ou de encargos que onerem heranças, legados ou doações, ficam, na parte respectiva, sujeitas ao regime instituído pelo direito português para estas associações ou corporações, que se tornará efectivo através do Ordinário competente e que nunca poderá ser mais gravoso do que o regime estabelecido para as pessoas jurídicas da mesma natureza.”, sendo que deve ser à luz do actualmente consagrado na Concordata de 2004, maxime nos artigos 10º, 11º e 12º que tem que se analisar a problemática da competência do Tribunal.

Invoca ainda a hierarquia das normas aplicáveis, e, estando em causa as duas Concordatas, faz apelo ao disposto no artigo 8º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, que, conforme interpretação de diversa jurisprudência do Tribunal Constitucional, pressupõe que “as normas do direito internacional convencional detém primazia na escala hierárquica sobre o direito interno, anterior e posterior”, prevalecendo a seguinte escala hierárquica: Primeiro - A Constituição da República Portuguesa; Segundo - A Concordata entre Portugal e a Santa Sé; Terceiro - As normas internas portuguesas, donde as normas internas portuguesas não podem por em causa a Concordata celebrada entre Portugal e a Santa Sé.

Num outro argumento, conexo com a lei interna portuguesa, alude ao facto de em 21 de Fevereiro de 1983 ter sido publicado o Decreto - Lei nº 119/83, que veio proceder ao alargamento do conceito legal de instituição particular de solidariedade social, aprovado pelo Decreto - Lei nº 519-G2/79 (que aquele Decreto - Lei revogou, à excepção dos artigos 7º, 22º e 24º do Estatuto publicado em anexo), e que veio reponderar as condições específicas que caracterizam as instituições de solidariedade social de expressão religiosa, tendo, na sequência disso, sido aprovado o novo Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.

Referindo-se ao relacionamento entre a Concordata e o Estatuto das IPSS, salientou que a associação constituída na ordem jurídica canónica como pessoa colectiva de direito canónico que a Ré é, tendo a qualidade de Irmandade da Misericórdia ou Santa Casa da Misericórdia está, por tal, incluída na Secção II do Capitulo III do Estatuto das IPSS, aprovado pelo já referido Decreto - Lei 119/83, de 25 de Fevereiro, sendo que o artigo 44º do Estatuto das IPSS consigna expressamente: “(Regime Concordatário) A aplicação das disposições do presente Estatuto às instituições da igreja católica é feita com respeito pelas disposições da Concordata celebrada entre a Santa Sé e a República Portuguesa em 7 de Maio de 1940”, acrescentando que igualmente o artigo 87º, nº 1 da Lei de Bases da Segurança Social (Lei nº 32/02 de 20 de Dezembro quando se refere às Instituições Particulares de Solidariedade Social, ressalva a natureza, autonomia e identidade das Santas Casas da Misericórdia; por outro lado, o artigo 48º do Estatuto das IPSS consigna expressamente: “(Tutela da Autoridade Eclesiástic

  1. Sem prejuízo da tutela do Estado, nos termos do presente diploma, compete ao ordinário diocesano, ou à Conferência Episcopal, respectivamente, a orientação das instituições do âmbito da sua diocese, ou de âmbito nacional, bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatórios e contas anuais”, concluindo que é a própria Lei Ordinária Portuguesa que absorve no seu seio a especificidade das irmandades da Misericórdia como é o caso da Ré, sendo a própria lei que consigna que é ao Ordinário Diocesano (…) que compete a orientação das Instituições no âmbito da sua Diocese (como é o caso da Ré), bem como a aprovação dos seus corpos gerentes e dos relatório e contas anuais (cfr. 48º do Estatuto das IPSS).

    Sustenta ser a própria lei interna portuguesa que entende que o tribunal competente para dirimir as disputas da aprovação dos corpos gerentes e do relatório e contas anuais, para além da discussão sobre orientação das Misericórdias, é o Ordinário Diocesano, sendo diferente a solução estando em discussão a actividade de solidariedade social praticada pela Misericórdia, caso em que seria, nos termos dos artigos 40º, 41º, 44º e 69º do Decreto - Lei nº 119/83 de 21 de Fevereiro, conjugados com nº 1, do artigo 11º da Concordata de 2004 competente o Tribunal Judicial).

    No mesmo sentido invoca ainda o próprio Compromisso da Santa Casa da Misericórdia do ..., onde o nº 3 do seu artigo 1º estabelece que a Irmandade adquire personalidade jurídica civil e estará reconhecida como Instituição Privada de Solidariedade Social, mediante participação escrita da sua erecção canónica, feita pelo Ordinário Diocesano aos serviços competentes do Estado, afirmando o mesmo Compromisso no ponto 4 desse artigo 1º, que: “em conformidade com a natureza que lhe provém da sua erecção canónica, a Irmandade está sujeita ao Ordinário Diocesano de modo similar ao das demais associações de fiéis.” Acrescenta ainda que mesmo que se entendesse que o tribunal competente para discutir a aprovação dos corpos gerentes e a orientação da instituição não fosse o Ordinário Diocesano, sempre se teria que entender que, face ao carácter de associação pública, que a erecção canónica impõe e atribui às Misericórdias e logo à Ré, o Tribunal competente para decidir seria o Tribunal Administrativo e nunca o Tribunal Judicial, referindo que, sendo, como é a Ré, uma associação pública de direito canónico não serão nunca aplicáveis as regras previstas no Código Civil para as associações privadas, previstas no Capítulo II do subtítulo I do título II do Livro I do Código Civil.

    Concluiu que deve ser considerado o Tribunal do Fundão materialmente incompetente para julgar a acção, devendo a Ré ser absolvida da instância.

    Na réplica apresentada, os Autores sustentam que na acção por eles proposta não estão em causa a disciplina eclesiástica, a integridade da fé dos irmãos, nem os domínios da consciência e do culto divino, mas sim, irregularidades relacionadas com o processo eleitoral da Ré; as Misericórdias apesar de se constituírem no seio da Igreja, enquanto “associações de fiéis” são entes associativos privados, que apenas estão sujeitos a “vigilância das competentes entidades eclesiásticas” nos domínios em que estas são soberanas, domínios esses que não se confundem com actos inerentes ao funcionamento da instituição onde devem ser seguidas as regras associativas do direito privado, nomeadamente, as constantes do Estatuto das IPSS’s.

    Invocam que resulta do teor do artigo 4° da Concordata de 1940 que competia ao Ordinário Diocesano efectivar a aplicação do direito canónico e do direito português às Associações e Organizações constituídas de harmonia com o direito canónico, nomeadamente, as Misericórdias; em 2004 entrou em vigor a nova Concordata estabelecida entre a República Portuguesa e a Santa Sé, a qual substituiu a Concordata de 7 de Maio de 1940 e afastou a possibilidade de aplicação do direito português pelo Ordinário Diocesano, porquanto passou o artigo 11° da Concordata de 2004 a prever que “As pessoas jurídicas canónicas reconhecidas nos termos dos artigos 1, 8, 9 e 10 regem-se pelo direito canónico e pelo direito português, aplicados pelas respectivas autoridades, e tem a mesma capacidade civil que o direito português atribui às pessoas colectivas de idêntica natureza”, e, por força do artigo 12 da Concordata de 2004, a questão deverá ser apreciada à luz da lei civil portuguesa, designadamente, do Estatuto das IPSS’s e do Código Civil, competindo a sua aplicação aos Tribunais Portugueses...

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