Acórdão nº 06P1932 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 19 de Julho de 2006

Magistrado ResponsávelOLIVEIRA MENDES
Data da Resolução19 de Julho de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 118/05, do Tribunal Judicial da comarca de Arganil, após realização do contraditório foi proferido acórdão que condenou o arguido AA, com os sinais dos autos, como autor material de um crime de homicídio simples, previsto e punível pelo artigo 131º, do Código Penal, na pena de 10 anos de prisão.

Na parcial procedência do pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido foi este condenado a pagar aos demandantes BB, CC, DD, EE e FF, devidamente identificados, a importância de € 17.500,00 acrescida de juros à taxa de 4%.

Interpôs recurso o arguido.

Na motivação apresentada formulou as seguintes conclusões: 1. A legítima defesa tem a sua base assente em quatro pilares objectivos, ou seja, a ocorrência de uma agressão actual, ilícita, só neutralizável através de um acto defensivo, acto esse que se deve restringir à utilização do meio ou meios suficientes para pôr termo à agressão.

  1. O que se põe em causa fundamentalmente no presente recurso é o juízo de valor objectivo emitido pelo Tribunal recorrido.

  2. Tal juízo de adequação não pode deixar de ter em consideração todas as circunstâncias específicas de cada caso, desde o tipo e a intensidade da agressão, a especial perigosidade do agressor, os meios de defesa de que se podia munir, a idade do agressor e do defendido, a compleição física de ambos, ou bem ou interesse agredidos, o carácter, a personalidade de cada um, as suas relações pessoais e todas as demais circunstâncias.

  3. Este juízo de adequação é um juízo objectivo, que obriga a colocar o julgador ou julgadores na posição que qualquer pessoa prudente assumiria, se estivesse nas circunstâncias concretas em que se encontrava o arguido.

  4. E nesse juízo objectivo a formular não pode exigir-se do arguido a utilização de um meio menos gravoso para o agressor, fazendo recair sobre o defendente riscos para a sua vida ou integridade física.

  5. Quem se defende não está obrigado a servir-se de meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa, não são seguras nem certas.

  6. Nas circunstâncias descritas no cenário factual dado como provado, a qualquer cidadão comum e prudente, que estivesse na posição do arguido, não era possível exigir-lhe a lucidez necessária para escolher outro meio ou medida de defesa minimamente eficaz, sendo normal um estado de grande perturbação e pânico.

  7. Está provado que a vítima, num curto espaço de tempo, atacou o arguido por três vezes, sendo que já nos dois primeiros ataques, sobretudo no segundo, foi posta em crise a própria vida do arguido.

  8. No terceiro e último momento, é óbvio, que após um soco na cabeça que deixa o arguido atordoado, logo seguido de outro soco nas costelas e de um lançamento de mãos ao pescoço, é impossível, de todo, neste quadro trágico e sucessivo, alguém não pensar que corre sérios riscos de vida.

  9. Aliás o arguido só consegue livrar-se do agressor após desferir o terceiro golpe com a faca.

  10. Sem a existência dos pressupostos da legítima defesa não é lícito falar em excesso de legítima defesa.

  11. Verificados todos esses pressupostos pode a situação configurar um excesso dos meios necessários à defesa, tanto na sua intensidade, como na espécie.

  12. Por isso mesmo, o excesso pode transformar um facto lícito num facto ilícito, culposo ou doloso.

  13. Todavia, não está demonstrado que o arguido se tivesse excedido, após as agressões de que foi alvo e que objectivamente punham em risco a sua vida.

  14. Não se demonstrou que o arguido após ter sido atingido na cabeça, nas costelas com dois socos, logo seguido do aperto no pescoço, tivesse ao seu alcance outro meio ou instrumento para se defender.

  15. Por outro lado, é impossível que a acção defensiva do arguido, naquelas circunstâncias concretas não tivesse sido levada a efeito sob um clima de forte perturbação e pânico.

  16. Se por mera hipótese se viesse a considerar que não estão reunidos os pressupostos da legítima defesa ou do excesso, a verdade é que a pena aplicada ao arguido se mostra demasiado pesada, atendendo a todas as circunstâncias que envolveram a prática do crime, justificando-se plenamente uma atenuação especial.

  17. As indemnizações atribuídas aos demandantes civis, mesmo num entendimento hipotético de se considerar a conduta do demandado como não justificada, mostram-se excessivas.

  18. A decisão recorrida ao considerar que os factos provados não configuram legítima defesa, violou o disposto no artigo 32º, do Código Penal.

  19. Independentemente dessa violação, sempre haveria violação dos artigos 71º, 72º e 73º do mesmo diploma legal.

  20. Violou ainda o disposto nos artigos 483º, 487º e 496º, do Código Civil.

    O recurso foi admitido.

    Responderam Ministério Público e assistentes/demandantes.

    Na contra-motivação apresentada o Ministério Público concluiu: 1. A matéria de facto, que não é questionada no recurso interposto, foi correctamente apreciada na decisão recorrida.

  21. As provas usadas no julgamento e que fundamentaram a decisão recorrida não foram ilegais ou proibidas.

  22. O julgador, nos termos do artigo 127º, do Código de Processo Penal, tem liberdade para apreciar a prova produzida, devendo a mesma constar da decisão, de molde a permitir, designadamente, ao arguido saber das razões por que foi condenado.

  23. A pena aplicada nos presentes autos mostra-se justa e adequada à gravidade dos factos, à culpa do arguido e, ainda, às necessidades de prevenção especial e geral que se colocam.

  24. Na decisão não se encontra qualquer interpretação, valoração ou aplicação de norma violadora dos princípios constitucionalmente consagrados, mormente o artigo 32º, da Constituição.

  25. Foi efectuada uma correcta aplicação do direito aos factos dados como provados.

  26. Não existem quaisquer elementos que permitam concluir pela verificação dos requisitos da legítima defesa.

  27. Não violou a decisão qualquer preceito legal, nem efectuou qualquer interpretação contrária à lei.

    Os assistentes/demandantes não extraíram conclusões da motivação que apresentaram, sendo que na mesma pugnam pela improcedência do recurso.

    O Exm.º Procurador-Geral Adjunto promoveu a designação de dia para audiência.

    Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

    São três as questões que o recorrente submete à apreciação deste Supremo Tribunal.

    A primeira consiste em saber se o comportamento por si assumido e o facto daí decorrente se devem ter por não puníveis, por exclusão da respectiva ilicitude. Trata-se de saber, concretamente, se a antijuridicidade daqueles se deve ter por afastada nos termos do art.31º, n.ºs 1 e 2, al.a), do Código Penal (1); A segunda, cujo conhecimento se encontra dependente da decisão a proferir relativamente à primeira, refere-se à pena aplicada, entendendo o recorrente que a resposta punitiva cominada se revela desajustada, por excessiva, na medida em que as circunstâncias ocorrentes sempre aconselhariam, face aos critérios que norteiam a determinação da medida da pena, a utilização do instituto da atenuação especial; A terceira, cujo conhecimento, tal qual sucede com a segunda, se mostra dependente da decisão que se vier a dar à primeira, refere-se ao pedido de indemnização civil, entendendo o recorrente que as indemnizações fixadas se revelam excessivas.

    Questão que oficiosamente se suscita é a da ocorrência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova.

    É do seguinte teor a decisão proferida sobre a matéria de facto (factos provados, factos não provados e motivação (2): «II. Fundamentação de Facto 1. Factos provados Desde data não concretamente apurada do ano de 1996 e por motivos não determinados, o arguido e o seu sobrinho GG desentenderam-se, deixando de se falar e de se cumprimentar. No decurso dos anos mais recentes, passaram a ignorar-se, sempre que se encontravam.

    O arguido foi passar o fim-de-semana a casa da sua amiga HH, residente nessa localidade. Antes de regressar a sua casa, cerca das 21.30 horas do dia 21 de Agosto de 2005, veio ao exterior da casa virar o seu triciclo e foi, então, abordado pelo GG, que lhe surgiu de forma inesperada e lhe apertou o pescoço. Libertou-se do GG, voltou ao interior da casa da HH e, pouco tempo depois, voltou a sair e, transportando-se no triciclo, dirigiu-se à povoação do Colmeal, onde reside, que dista cerca de 5 Kms. do Sobral. No percurso, a cerca de 150 metros da garagem da sua irmã, quando conduzia o triciclo, voltou a ver o GG na estrada em que circulava, o qual fez um gesto com as mãos para o agarrar, sem o conseguir.

    Assim, nesse dia 21 de Agosto de 2005, pelas 22.00 horas, procedendo da povoação de Sobral, no seu velocípede (triciclo) de matrícula 1GOI, o arguido chegou ao Colmeal, do concelho de Góis e da comarca de Arganil, e imobilizou esse veículo na Rua Principal dessa localidade (na posição ilustrada pelas fotografias n.°s 6, 7 e 8, inseridas a fls. 133/134, e descrita no "croquis" constante de fls. 130 destes autos), a fim de o recolher, como era hábito, na garagem de sua irmã, ali localizada. Garagem que se situa na povoação do Colmeal, entre casas de habitação e em local com iluminação pública.

    Após se ter apeado do veiculo, no momento em que se encontrava na lateral direita do triciclo (atento o sentido Sobral/Colmeal), para retirar um saco que estava na traseira (onde trazia comida que lhe tinha sido dada pela HH) e depois de tirar o capacete, que tinha colocado no atrelado do triciclo, surgiu a correr na sua direcção, procedendo do lado do Sobral, o falecido GG. Ao aproximar-se do arguido, o GG deu-lhe um murro na cabeça, que o fez ajoelhar, e, tendo-se, entretanto, levantado, o GG desferiu-lhe um murro nas costelas do lado esquerdo e deitou-lhe as mãos ao pescoço. O GG não dispunha de qualquer instrumento de agressão.

    Como a vítima não retirava as mãos do seu pescoço, o arguido retirou da caixa do atrelado do triciclo uma faca com 32 cm de comprimento, com cabo em madeira e 19...

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