Acórdão nº 05P4221 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Janeiro de 2006

Data18 Janeiro 2006
Órgãohttp://vlex.com/desc1/1997_01,Supreme Court of Justice (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

Em processo de instrução que correu termos no Tribunal da Relação de ...., registado sob o n.º ...., no qual figura como arguido AA, Procurador da República, e como assistente BB, Procurador Adjunto, após a realização de debate foi proferida decisão que pronunciou o arguido como autor material, em concurso real, de três crimes de difamação previstos e puníveis pelos artigos 180º, n.º1 e 184º, do Código Penal (i) Interpuseram recurso Ministério Público e arguido.

O Ministério Público extraiu da motivação apresentada as seguintes conclusões: A douta sentença recorrida ao considerar preenchida a factualidade típica do crime de difamação: 1º - não ponderando nem admitindo que o arguido pudesse, nas comunicações disciplinares que levou a cabo acerca do seu subordinado hierárquico, emitisse os juízos de valor que considerasse adequados, no exercício de um direito e no cumprimento de uma obrigação em que estava investido; 2º - nem considerando, além disso, que as comunicações em questão nunca se mostrariam adequadas a produzir um desvalor com relevância penal para o assistente, 3º - já que se mostravam perfeitamente herméticas e portanto insusceptíveis de ofender a honra e consideração ao assistente perante quem quer que fosse; 4º - e bem assim que o destinatário das comunicações bem como os eventuais ulteriores titulares do processo não poderiam ser considerados terceiros, uma vez fazem parte da relação jurídico disciplinar em questão, 5º - violou assim, por erro de interpretação, quanto ao preenchimento da factualidade típica do crime de difamação, p. e p. pelos artigo 180º, n.º1 e 184º, do Código Penal e, bem assim, quanto à verificação da causa de exclusão da ilicitude a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 31º do mesmo Código Penal.

É do seguinte teor a parte conclusiva da motivação apresentada pelo arguido: 1ª O conceito de honra e de consideração pessoal do assistente é multifacetado, incoerente, pessoalizado, variando consoante as conveniências ou com quem pretende visar criminalmente; 2ª Na medida em que, dentro de idênticos contextos funcionais, valoriza criminalmente expressões do recorrente em tudo similares a outras, ou mesmo de maior contundência, proferidas por profissionais do mesmo ofício, às quais não atribui qualquer desvalor penal; O que redunda em total descrédito da queixa apresentada, motivada por razões que nada têm a ver com indignação por ofensa àquele valor (p. ex. o recorrente ter dele participado disciplinarmente) e que, consequentemente, não podem levar ao preenchimento do tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 180º, do Código Penal; Mesmo que, numa análise superficial, se considerassem, porventura, as expressões utilizadas pelo recorrente como eventualmente enquadráveis em tal ilícito, sempre essa hipótese seria de afastar, pois foram proferidas no contexto do dever de sindicar/informar, não resultando minimamente dos autos que o hajam sido com qualquer intenção de rebaixar ou achincalhar (a esse propósito, Ac. Rel. Coimbra, de 02/03/05, in www.dgsi.pt e Ac. da Rel. Coimbra, de 23/04/98, in CJ, XXIII, II, 64, citado por Maia Gonçalves, Código Penal Anotado; 5ª Acresce que o recorrente agiu no exercício de um direito e de uma obrigação, no prolongamento de um inquérito disciplinar, em que, por imperativo profissional, como superior hierárquico, não podia deixar de adjectivar, qualificar, emitir juízos de valor, sobre o comportamento funcional do assistente, do que considerou reiterado desrespeito para consigo, conforme o Estatuto do Ministério Público, Regulamento de Inspecções do M.P. e Regulamento da PGR acima citados, além de que uma ausência de qualificação descaracterizaria qualquer informação de serviço de quem superintende, tornando-a inócua ou inútil, o que, tudo junto, afasta a ilicitude, quer por força do artigo 31º, n.º 2, alíneas b) e c), do Código Penal, seja por apelo ao disposto no artigo 36º, do mesmo diploma; 6ª Por outro lado, as comunicações e expressões alvo da discórdia (e não só) expressas nos ditos ofícios, inserem-se num contexto bem determinado e estanque, hermético, em que tudo foi transmitido pela via confidencial, dirigido ao próprio destinatário (o Sr. Inspector) que as tinha que receber por dever de ofício e que, atento o sigilo do inquérito (artigo 191º, do Estatuto do Ministério Público), nem ele, nem ninguém, as podia divulgar; 7ª E não se argumente que o Sr. Inspector (ou mesmo as demais pessoas que, por dever de ofício, tinham que intervir no inquérito disciplinar) é terceiro para efeitos do n.º 1, do preceito citado. No aludido contexto, terceiro haverá que ser alguém que esteja de fora, que não tenha contacto com o inquérito disciplinar, o que não sucede na situação em apreço. Daí que não se possa falar de relação tipicamente triangular a que alude Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, 608; 8ª Também não se verifica o elemento subjectivo da infracção porque se não mostra minimamente indiciado que o recorrente quisesse que terceiros (os tais alheios ao inquérito) viessem a tomar conhecimento das expressões mesmo após o encerramento do inquérito, mas antes, e exclusivamente (a via confidencial utilizada é disso exemplificativa), quem tivesse necessariamente que intervir no processo disciplinar; 9ª Por último, a existir matéria criminal, o que só por mera hipótese académica se concede, nunca estaríamos perante três crimes, mas tão só defronte de um na forma continuada (artigo 30º, n.º 2, do Código Penal).

Na verdade, haveria um único pretenso "ofendido", o bem jurídico protegido seria o mesmo, o meio, a forma (três ofícios confidenciais), exactamente igual, o espaço temporal que mediou entre os três ofícios foi reduzido, de cerca de um mês (03/06/03, 25/06/03, 07/07/03) e a solicitação exógena igualmente a mesma, baseada na conduta reiterada de desrespeito do assistente e no consequente inquérito disciplinar em que foi visado.

Sempre estariam, portanto, preenchidos os requisitos para que tivesse sido imputado ao recorrente apenas um crime na forma continuada.

  1. Foram, assim, violados os artigos 180º, n.º1 e 184º, 31º, n.º 2, alíneas b) e c) e 36º, todos do Código Penal.

  2. A entender-se existir matéria criminal, o que só por mera hipótese académica se admite, teria ainda sido violado o artigo 30º, n.º2, do Código Penal.

Os recursos foram admitidos.

Na contra-motivação apresentada pelo assistente foram formuladas as seguintes conclusões: 1 - As expressões utilizadas pelo recorrente que lhe são imputadas no despacho de pronúncia, são objectivamente difamatórias, pois elas caracterizam inquestionável e objectivamente o assistente como pessoa desprovida de compostura, civilidade, educação, respeito, urbanidade, honestidade, lealdade, etc., o que é claramente atentatório da sua dignidade pessoal e profissional.

2 - É grosseiramente falsa a suspeita levantada pelo recorrente de que o assistente teria um "conceito de honra e consideração pessoal" "multifacetado, incoerente, pessoalizado, variando consoante as conveniências ou com quem pretende visar criminalmente" e de que os presentes autos apenas teriam sido instaurados por "mero desforço".

3 - Desde logo porque muito tempo antes de apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos, o assistente manifestou essa sua intenção, quer ao recorrente, quer à própria hierarquia do Ministério Público.

4 - Depois porque nenhuma das fartas transcrições do recorrente a este respeito se equipara às expressões por si utilizadas e em causa nos autos, designadamente quando afirma que o assistente actuou de modo "intelectualmente desonesto" e "à falsa fé" ou que "utiliza linguagem grosseira e denotadora de falta de elementares princípios de respeito e educação", e que tal assume natureza "gravemente estrutural"! 5 - Acresce que o recorrente é que, em Julho passado apresentou queixa-crime contra o assistente, por mero desforço pelo facto de este ter requerido a instrução no presente processo! 6 - E que aquelas referidas transcrições hão-de ser vistas não como iniciativas autónomas mas como expressão da danosidade do tipo de actuação em causa nos autos.

7 - Sendo ainda certo que no final do processo disciplinar ao qual foram dirigidos os ofícios do recorrente ora em apreço, se acabou afinal por reconhecer que o assistente "é um magistrado zeloso e cumpridor dos seus deveres", "tem muito bom relacionamento com os colegas, juízes e funcionários com quem trabalha", "sendo prezado e apreciado por todos", e que "tem uma resposta ao serviço a seu cargo exemplar", o que é evidentemente incompatível com o perfil do assistente traçado pelo recorrente nos textos em causa nos autos.

8 - A conduta do recorrente em apreço nos autos preenche integralmente o tipo objectivo do artigo 180º, n.º1, do Código Penal, designadamente no que toca à "reputação perante terceiro".

9 - Primeiro porque é consabidamente intenção do legislador "… cobrir todos os factos violadores da honra…", seja quanto ao seu "lado externo" seja quanto ao seu "lado interno".

10 - Depois porque não pode ser concedido ao segredo disciplinar do Ministério Público mais dignidade que ao segredo de justiça, e consagrar a teoria defendida pelo recorrente seria abrir a porta para que em qualquer processo-crime se dissesse o que muito bem se entendesse, estando à partida afastado o preenchimento do tipo legal de crime do artigo 180º, do Código Penal, atento o carácter hermético do processo penal.

11 - E ainda, em todo o caso, porque o sigilo disciplinar, como outros, não é eterno, e inevitavelmente haveria de se extinguir, como de resto já se extinguiu.

12 - Não actuou o recorrente no exercício ou cumprimento de um qualquer direito ou dever.

13 - Com efeito, o poder/dever de participação disciplinar não é um poder que derive da relação hierárquica, sendo antes, nos termos do artigo 23º, alínea c), do DL 24/84, de 16/01 (Estatuto da Função Pública, aplicável por remissão aos Magistrados do Ministério...

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