Acórdão nº 260/23.9GAPNI-A.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-01-10

Ano2024
Número Acordão260/23.9GAPNI-A.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3))

Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

Relatório


A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso da decisão proferida pela Exma. Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Leiria – J3 no processo de inquérito n.º 260/23...., que indeferiu a tomada de declarações para memória futura da ofendida AA.

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1.1. Conclusões do recurso (que se transcrevem integralmente):

1. No presente inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, em que é vítima AA, e arguido BB.
2. O Mmo. Juiz de Instrução devolveu os autos ao Ministério Público a 28/06/2023, na sequência do despacho do Ministério Público de 22/06/2023 que requereu a tomada de declarações para memória futura a AA, vítima de crime de violência doméstica, ao abrigo do disposto nos artigos 268.º, n.º 1, alínea f) e 271.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artigo 33.º da Lei n.º 112/2009 e artigo 24º, n.º 1 da Lei n.º 130/2015.
3. Nos termos do mencionado despacho judicial, o indeferimento da diligência requerida justifica-se por duas ordens de razões; 1.ª) porque a vítima nunca foi inquirida nos presentes autos, sendo importante que tal seja realizado em ordem a que se apure quais os factos em investigação nos autos e se a ofendida pretende prestar declarações em relação aos factos; e 2.ª) porque do despacho do Ministério Público não resulta a indicação de qualquer circunstância que justifique neste momento a realização da diligência promovida.
4. O Ministério Público discorda desta decisão, por considerar que nos inquéritos de violência doméstica, ainda mais sendo o presente de risco elevado e encontrando-se a vítima em casa abrigo, tal diligência deverá ser realizada porquanto se revela fundamental não só enquanto meio de prova, mas como medida especial de proteção da vítima, de modo a evitar precisamente situações de vitimização secundária.
5. Como decorre do artigo 16.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, “as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal”.
6. Da análise das sucessivas alterações legais no que ao regime das declarações para memória futura concerne, constata-se que se evoluiu de uma natureza puramente cautelar – em que se visava assegurar, tão-só, a antecipação da produção de prova – para uma natureza mista, cautelar e de proteção, com vista a proteger e evitar a exposição permanente das vítimas, sempre ao abrigo de uma crescente jurisdicionalização por forma a assegurar os direitos fundamentais do arguido e o respeito por um processo equitativo.
7. O recurso ao instituto das declarações para memória futura nos casos de crimes de violência doméstica procura, mormente, evitar os danos psicológicos causados pela evocação sucessiva, pelas vítimas, da sua experiência traumática e a sua exposição em julgamento público – a chamada vitimização secundária.
8. O critério crucial para se decidir pela realização ou não da diligência, face ao consagrado nos aludidos preceitos legais, terá de passar pela ponderação da necessidade de proteção da vítima, margem de ponderação essa que, no caso das vítimas especialmente vulneráveis, deixa de existir, já que esta condição de fragilidade, reconhecida desde logo pela Lei, está indiscutivelmente associada à necessidade da sua proteção.
9. Não se compreende por que motivo deveria a vítima ser inquirida, após apresentar a denúncia e antes da inquirição pelo Mmo. Juiz de Instrução em sede de declarações para memória futura.
10. Os factos em investigação são os descritos no auto de notícia, bem como todos aqueles que decorram da própria inquirição da vítima, não sendo possível ao Ministério Público balizá-los num momento anterior à prestação desse depoimento.
11. As declarações para memória futura são presididas pelo Mmo. Juiz de Instrução, que procede à inquirição, limitando-se o Ministério Público e o arguido a formular perguntas adicionais, nos termos do artigo 271.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
12. As testemunhas que se insiram na previsão do artigo 134.º do Código de Processo Penal podem sempre recusar-se a prestar declarações, a cada nova inquirição, pelo que a inquirição prévia da vítima pelo Ministério Público não é garantia de que preste declarações posteriormente, improcedendo por este motivo o argumento do Mmo. Juiz de Instrução.
13. Também não pode colher o argumento de que “do despacho do Ministério Público não resulta a indicação de qualquer circunstância que justifique neste momento a realização da diligência promovida”.
14. É ao Ministério Público que cabe a direção da ação penal na sua plenitude, sendo este quem decide a tempestividade e adequação das diligências probatórias a encetar na fase de inquérito (artigos 53. °, n.º 2, alínea b) e 263.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal).
15. A tomada de declarações para memória futura traduz-se numa exceção ao princípio constitucional da imediação.
16. A violência doméstica é um tipo de crime que se insere no conceito de criminalidade violenta, conforme definido no artigo 1.º, alínea j) do Código de Processo Penal.
17. A vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67.°-A, n.º 1, alínea b) e por força do estabelecido no n.º 3 do mesmo diploma.
18. O artigo 21.º, n.º 2, alínea d) da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, estabelece que as vítimas especialmente vulneráveis beneficiam de várias medidas especiais de proteção, entre elas a da prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º do mesmo diploma, a fim de que os seus depoimentos possam ser tidos em conta em sede de julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.
19. O objetivo da Lei é – a par com o estabelecido nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho – que as declarações da vítima especialmente vulnerável tenham lugar no mais breve espaço de tempo após a ocorrência do crime e que, sempre que possível, seja evitada a repetição da sua audição, com vista a evitar a vitimização secundária dos ofendidos.
20. Para além de um direito das vítimas especialmente vulneráveis, como a do presente processo, e de uma medida de proteção, as declarações para memória futura constituem um meio de prova e por isso podem revelar-se essenciais para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz.
21. As declarações de vítima especialmente vulnerável deverá ser efetuada no mais curto espaço de tempo após a ocorrência dos factos ilícitos e sempre que possível deverá ser evitada a repetição da sua audição. Também neste sentido o artigo 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho.
22. As boas práticas ensinam que as declarações para memória futura devem ocorrer o mais próximo possível do evento lesivo, de modo a que o depoimento seja mais fidedigno e
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