Acórdão nº 17583/18.1T9PRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 2023-05-10

Ano2023
Número Acordão17583/18.1T9PRT.P1
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Proc. 17583/18.1T9PRT.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo que correu termos no Juízo Central Criminal do Porto, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferida acórdão julgando-se:
“Em face de todo o exposto, acordam as Juízas que compõem este Tribunal Colectivo em julgar improcedente, por não provada, a acusação pública/pronúncia e, em consequência:
a) absolvem a arguida AA da prática, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de acesso ilegítimo, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º1 e 4, al. a), da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária), bem como por referência ao artigo 35.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa), em concurso aparente com dois crimes de acesso indevido, p. e p., à data da prática dos factos, pelo artigo 44.º, n.ºs 1 e 2, al. b), da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e atualmente pelo artigo 47.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (Lei da Proteção de Dados Pessoais), por referência ao artigo 10.º desta Lei de Proteção de Dados Pessoais, e com dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º com referência ao artigo 386.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por referência aos artigos 35.º, n.º 4, 266.º e 269.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, o Código de Conduta dos Trabalhadores da ATA (Pontos 1, 2, 3 e 4), aprovado pelo Conselho de Administração da ATA em 23/07/2015, Política de Segurança da Informação da ATA (Ponto 1), aprovada pelo Conselho de Administração da ATA em 23 de Julho de 2015), bem como por referência, à data dos factos, ao artigo 3.º, al. a) e c), 5.º, n.º 1, 6.º, al. d), 8.º e 17.º, n.º 1, da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Proteção de Dados Pessoais) e ao artigo 64.º do DL n.º 398/98, de 17 de Dezembro (Lei Geral Tributária);
b) Absolvem a arguida AA da pena acessória de proibição de exercício de função, prevista no artigo 66º do Código Penal.”.
*
Não se conformando com a sentença o Ministério Público veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
Violação do princípio de presunção de inocência/in dubio pro reo
4.1. Princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo
Como referimos e resulta da motivação da decisão de facto quanto aos factos não provados, o Tribunal recorrido, decidiu ter tais factos como não provados invocando o princípio do in dubio pro reo. Julgamento que, no entender do Ministério Público, merece censura, que pretende obter desse Venerando Tribunal. Daí que se imponha abordar, embora sinteticamente, esse princípio e as suas repercussões no caso sujieto. Como tivemos ocasião de referir noutro local , com o princípio da presunção de inocência, até haver uma decisão penal condenatória, com trânsito em julgado, todo o arguido se presume inocente, não recaindo sobre ele, por isso, o ónus de provar que não é responsável pela prática do facto ilícito típico que porventura lhe seja imputado, antes cabendo à acusação fazer prova de que o cometeu e assim merece ser censurado. Este princípio é uma das grandes conquistas da Humanidade, tendo sido legado pela França e depois transposto para a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em cujo art.° 11.°, n.° 1, se dispõe que “toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas”. A lei portuguesa também não o esqueceu a nível constitucional (art.° 32.°, n.° 2), onde se prescreve que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”. Em resumo, pois, o modelo adoptado para o direito processual penal oferece um sistema que repousa na presunção de inocência e nunca na presunção de culpa. Como corolário do anterior princípio da presunção de inocência apresenta-se o princípio “in dubio pro reo”, que obriga a que, instalando-se e permanecendo dúvida acerca de factos referentes ao objecto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática) essa dúvida deve sempre ser desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à sua absolvição. «Um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz ... que omita a decisão ... – tem de ser sempre valorado a favor do arguido», sendo «com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, I Vol., pág. 213) Adverte, no entanto, este Autor: «... O princípio in dubio pro reo vale só, evidentemente, em relação à prova da questão-de-facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito: aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto. Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude ... e de exclusão da pena ..., bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas “modificativas” ou simplesmente “gerais”» (loc. cit. pág. 215).
Decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 25-05-2006, proc. n.° 1389/06-5): “(III) – O princípio in dubio pro reo, constitui um princípio probatório, segundo o qual a dúvida em relação à prova da matéria de facto, tem de ser sempre valorada favoravelmente ao arguido, traduzindo o correspectivo do princípio da culpa em direito penal, a dimensão jurídicoprocessual do princípio jurídico-material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena. (IV) – Este princípio não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. (V) – Estando em causa a qualificação jurídica de uma determinada conduta, questão de direito que envolve a interpretação das normas que tipificam a conduta em causa, não é lícito recorrer ao princípio in dubio pro reo, ou a eventual decorrência substantiva do mesmo, tanto mais quando nenhuma dúvida expressaram as instâncias, nem resulta da matéria de facto provada.” «Quando se trata de factos justificativos ou circunstâncias desculpantes bastará criar no espírito do julgador a dúvida sobre a sua ocorrência para que devam ser considerados a favor do arguido em virtude do princípio da presunção da inocência» Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal III, p. 214, citado, no mesmo sentido, por Francisco Marcolino de Jesus, Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal, Almedina, pág. 100. Figueiredo Dias, critica o Ac. do STJ de 14-7-1971, BMJ 209/69 que decidiu que «tratando-se de uma circunstância justificative do facto, circunstância dirimente da responsabilidade criminal é ao réu que cabe alegá-la e prová-la e por forma a ver afastado o dolo na sua actuação ilícita» (loc. cit., pág. 216).
4.2. A presunção de inocência e o in dubio pro reo e as causas justiticativas ou de desculpa As duas referências que antecedem conduzem-nos à questão-cerne do presente recurso e na qual, com o devido e todo respeito, o douto Tribunal recorrido não terá atentado na sua devida extensão. Com efeito, o Tribunal recorrido teve como não provados, invocando o princípio do in dubio pro reo, factos que se reportam a causa de justificação e não aos elementos materiais dos crimes imputados. Questão que tem de ser ponderada de forma específica, em relação a esta última, apesar do princípio lhe ser também aplicável. Vejamos, pois, pela mão de Germano Marques da Silva, o regime aplicável a tal situação: «Uma outra questão convém ser ponderada: respeita à prova das circunstâncias justificativas ou de desculpa. Entendem alguns que compete ao arguido a prova das circunstâncias justificativas e de desculpa por si alegadas10. Também este entendimento viola o princípio da presunção de inocência pois poderia conduzir à condenação de uma pessoa por um facto que talvez pudesse não ser punível, por diversas circunstâncias, isto é, um facto que em qualquer das suas manifestações resultava duvidoso por falta de prova. Entendemos, com a generalidade da doutrina portuguesa, que a presunção de inocência opera também nos casos em que subsista dúvida acerca da concorrência de um facto impeditivo ou extintivo da responsabilidade e, por consequência, o arguido deve também nesses casos ser absolvido. Importa esclarecer, porém, que isso não significa que o tribunal tenha de demonstrar uma a uma todas as circunstâncias ou que a mera alegação das mesmas pelo arguido implique a necessidade de provar a sua ausência. O que exige o princípio da presunção de inocência é a absolvição em caso de dúvida pelo que o tribunal pelo conjunto das provas praticadas está convencido da inexistência de circunstâncias justificativas, de culpa ou de outras excludentes da responsabilidade poderá condenar com base na prova dos factos constitutivos do crime,
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT