Acórdão nº 1709/16.2JFLSB-B.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2024-01-24

Ano2024
Número Acordão1709/16.2JFLSB-B.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (COIMBRA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA – J2))

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo de Inquérito nº 1709/16.... foi julgado improcedente o pedido de arresto preventivo formulado pelo Ministério Público contra AA, BB, CC, DD, EE, FF e Sociedade A..., Lda, por não indiciariamente comprovado o requisito de «fundado receio» .

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões do Ministério Público

Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):



1. No âmbito do despacho final proferido nestes autos, o MP deduziu acusação contra seis arguidos, imputando-lhes a prática de crimes de participação económica em negócio, peculato, falsificação de documentos e abuso de poder.

2. Na medida em que os crimes praticados geraram vantagens, foi efetuado, juntamente com o despacho de acusação, pedido de declaração de perda das vantagens dos crimes a favor do Estado, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 110.º n.º 1, alínea b), 2, 4, 5 e 6 e 111º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, perfazendo um total apurado de 2.098.194,70€.

3. Sendo igualmente requerido, com urgência, o decretamento de arresto preventivo, previsto no artigo 228º do CPP, por forma a evitar o desaparecimento de bens/valores consubstanciados nas vantagens da prática dos crimes por parte dos arguidos e sociedade beneficiária.

4. Por despacho de 22-10-2022, o tribunal julgou improcedente o pedido de arresto, entendendo, em síntese, que embora estivessem reunidos todo os restantes pressupostos, não estava preenchido, numa apreciação sumária, o requisito legal de periculum in mora.

5. Este requisito deverá ser preenchido com recurso às regras da experiência comum relativa a colocação a salvo ou utilização diária de valores, dando-se uma abertura interpretativa consonante e efetuada uma adaptação aos concretos objetivos e pressupostos penais e processuais penais sempre que se pondera a remissão para o artigo 391º do CPC, sob pena de esvaziamento dos arrestos previstos no artigo 228º do CPP quando não haja atos de ocultação/dissipação de vantagens, atos que poderão em si, consubstanciar crimes de branqueamento.

6. Com efeito, estamos no âmbito de confisco das vantagens da atividade criminosa, isto é, valores que não pertencem aos arguidos e beneficiários, mas ao Estado Português, sendo que a dissipação dos bens e/ou valores/vantagens, atenta a volatilidade do dinheiro, poderá suceder com todas as atividades diárias e corriqueiras imagináveis.

7. Nestes autos, face ao elevadíssimo valor global em questão, fundamenta o receio de um homem médio de perda do seu crédito o facto de as regras de experiência comum darem um quadro mais do que provável e usual de que, a final, nada existirá de interesse para satisfazer estes valores, constatando-se ser este o desolador quadro pós-sentencial com que nos deparamos nos casos em que não se lança mão de qualquer providência que acautele desde cedo valores e bens para o Estado.

8. A comunidade não compreenderá como o Estado, sabendo e antecipando esse desolador cenário final, nada faça ou dificulte injustificadamente o garantir que o valor das vantagens do crime fique do seu lado o mais cedo possível, entendendo o MP ter alegado e comprovado o preenchimento desse requisito no caso dos autos.

9. Independentemente da leitura mais ou menos elástica relativamente à exigência do periculum in mora, a verdade é que essa imposição legal afronta os objetivos do legislador da União Europeia, na medida em que, ao invés de facilitar o confisco das vantagens da atividade criminosa, dificulta-o de forma acentuada, como a doutrina já teve oportunidade de o salientar, criando um sistema prático de “quase anti arresto” que justificará a sua parca utilização e sucesso.

10. A Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014 sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia (a Diretiva) foi erradamente transposta em, pelos menos, três pontos por parte do legislador português, sendo um desses pontos a manutenção da exigibilidade do aludido requisito no artigo 228º do CPP, sendo a clarificação desta questão fundamental não só para a decisão deste caso como para outros no futuro.

11. O considerando 26 da Diretiva estabelece, entre outras considerações, que “A fim de evitar o desaparecimento dos bens antes de a decisão de congelamento poder ser proferida, deverão ser conferidos às autoridades competentes dos Estados-Membros poderes para tomarem medidas imediatas destinadas a salvaguardar esses bens”, não impondo aos Estados-Membros qualquer requisito adicional a esse nível.

12. Como refere certeiramente Hélio Rigor Rodrigues “Bastará que se convoquem as finalidades e fundamentos dogmáticos do confisco das vantagens do crime, e imediatamente se conclui que não será dogmaticamente sustentável a exigência relativa à demonstração do periculum in mora nos casos de arresto para o confisco das vantagens”, e “O crime não é titulo aquisitivo da propriedade, e o arguido não pode dispor (ainda que temporariamente) desse incremento patrimonial, mesmo que não tenha intenção de o dissipar.”.

13. Ainda que entendendo que o arresto no âmbito do artigo 10º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, após a dedução de acusação, prescinde do requisito do periculum in mora, bastando-se com o conceito de fortes indícios, nota-se existir flagrante falta de sintonia legal com o artigo 227º e 228º do CPP, sendo que visando essencialmente os mesmos fins e até quanto aos mesmos crimes os requisitos diferem.

14. De facto, ambos os arrestos visam privar quem comete crimes das vantagens da sua prática, contudo, no caso dos autos até se consegue fazer uma ligação direta das vantagens apuradas em relação aos concretos crimes imputados, o que, por maioria de razão, justificaria a mesma dispensa legal de periculum in mora, contrariando o disposto no artigo 7º da Diretiva, o qual não prevê qualquer requisito como este para que se opere o congelamento, indevidamente chamando à colação os requisitos previstos no artigo 391º do CPC.

15. Existe, assim, a necessidade de efetuar uma interpretação conforme ao direito da UE, designadamente no que diz respeito ao nódulo interpretativo resultante da alteração operada pela Lei 30/2017, de 30 de Maio, que transpôs a Diretiva, ao regime de arresto, por alteração do disposto na Lei 5/2002, e da sua potencial aplicação à perda clássica prevista no CP.

16. Esta lei, ao manter a exigência do apontado requisito adicional e cívilistico para decretar o arresto preventivo, quando não o exige já para efeitos do artigo 10º da Lei 5/2002, não está assim, em linha com os objetivos da UE e Diretiva 2014/24, dificultando o confisco de vantagens do crime mesmo que não haja atos de dissipação e ocultação.

17. De acordo com o artigo 267.º, alínea b) do TFUE, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, considerando o MP que estamos, de facto, em face de uma questão desta natureza, suscitada perante um tribunal Português no âmbito de um processo pendente.

18. O recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial será, na opinião do MP, a solução que se impõe para aquilatar decisivamente acerca da compatibilidade da lei portuguesa que transpõe a Diretiva com este instrumento normativo da UE, sabendo-se que uma fatia substancial dos pedidos de reenvio prejudicial efetuados por parte dos tribunais dos Estados-Membros assenta precisamente na compatibilidade ou oposição das legislações nacionais em relação a instrumentos normativos da UE.

19. Face a todo o exposto, o Ministério Público sugere cerimoniosamente ao Tribunal da Relação de Coimbra, para decisão do presente recurso, que seja acionado o mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267º do TFUE, colocando ao TJUE a(s) questão(ões) da compatibilidade da lei portuguesa com a Diretiva 2014/42/EU, mais sugerindo, sem prejuízo de questões adicionais e/ou diversa enunciação, a formulação da seguinte questão concreta a título de pedido de decisão prejudicial:
- Uma correta interpretação do artigo 7.º da Diretiva 2014/42/EU opõe-se a uma legislação como a portuguesa, prevista no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e artigos 227.º e 228.º do Código de Processo Penal, que exigem, para o decretamento de uma medida de garantia patrimonial (arresto ou arresto preventivo) sobre as vantagens/produtos provenientes de infração penal, para além dos indícios da prática do crime, a condição adicional da verificação da existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais (periculum in mora), ou seja, um perigo de dissipação de bens e perda da garantia patrimonial, dessa forma permitindo que o agente se mantenha na posse das vantagens da prática de crime, mesmo que não tenha intenção de as dissipar, contrariando assim os objetivos da Diretiva 2014/42/UE, mais concretamente o objetivo de privar os agentes dessa atividade das vantagens provenientes do cometimento de infrações penais, através dos mecanismos de confisco previstos nos artigos 4.º e 5.º da Diretiva?

20. Na sequência desse eventual juízo por parte do TJUE, sendo encontrada e decidida a dissonância entre a Diretiva 2014/42/UE e a lei nacional nos termos pugnados pelo MP ou semelhantes, deverá o despacho judicial que julga improcedente o requerimento de arresto preventivo ser revogado e substituído por outro que decrete o arresto preventivo em relação aos arguidos e sociedade beneficiária nos exatos termos requeridos, seguindo-se os demais trâmites legais até final nessa parte.

21. Não considerando o Tribunal da Relação de Coimbra existir qualquer
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