Acórdão nº 141/22.3GCLRA-A.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 2022-11-23

Data de Julgamento23 Novembro 2022
Ano2022
Número Acordão141/22.3GCLRA-A.C1
ÓrgãoTribunal da Relação de Coimbra - (LEIRIA (JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA – J3))

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Os autos de inquérito supra referenciados, que correm termos pelo Departamento de Investigação e Acção Penal – 2ª secção de ..., foram remetidos ao Juízo de Instrução Criminal ... – Juiz ..., com a promoção que seguidamente se transcreve (itálico nosso, nesta como nas demais transcrições):

Remeta de imediato ao JIC, nos termos do disposto no artigo 187.º, n.º 1, al. e), 189.º, n.º 2, 269.º, n.º al. e) do Código de Processo Penal e 15.º a 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15.09., para apreciação e decisão do infra:

Nos autos denuncia-se a eventual prática de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal praticado por telefone, por factos praticados, no período compreendido entre 08.10.2021 e 17.02.2022 inclusive, pelo utilizador do telemóvel com o cartão ...75 para o telemóvel com o cartão n.º ...94.

Afigura-se, deste modo, relevante para o prosseguimento da investigação averiguar se tal telemóvel foi utilizado no referido período pelo suspeito para enviar mensagens ao ofendido, razão pela qual promovo que se oficie as operadoras de telecomunicações celulares móveis MEO/Altice, Vodafone, Nowo e Lycamobile, NOS para que remetam aos autos:

- Facturação detalhada das mensagens/chamadas enviadas pelo n.º ...75 desde 08.10.2021 a 17.02.2022 inclusive e, caso os mesmos sejam remetidos em CD ou outro qualquer suporte informático, que seja ordenada a extração para papel.

Recebidos os autos no ..., a Mmª Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho com o seguinte teor:

Nos autos investiga-se a prática de factos susceptíveis de integrarem, em abstracto, um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.°, n.º 1, do Código Penal, praticado por telefone, no período compreendido entre 08.10.2021 e 17.02.2022 inclusive, pelo utilizador do telemóvel com o cartão ...75 para o telemóvel com o cartão n.º ...94.

O Ministério Público entende que é relevante para o prosseguimento da investigação averiguar se tal telemóvel foi utilizado no referido período pelo suspeito para enviar mensagens ao ofendido, razão pela qual promove que se oficie às operadoras de telecomunicações celulares móveis MEO/Altice, Vodafone, Nowo e Lycamobile, NOS para que remetam aos autos a facturação detalhada das mensagens/chamadas enviadas pelo n.º ...75 desde 08.10.2021 a 17.02.2022 inclusive ao abrigo do disposto nos artigos 187.°, n.º 1, al. e), 189.°, n.º 2, 269.°, n.º al. e) do Código de Processo Penal e 15.° a 17.° da Lei nº 109/2009, de 15.09.

Cumpre apreciar e decidir:

No que toca à obtenção de dados de tráfego de conversações ou comunicações telefónicas, regeu até à entrada em vigor da Lei n.º 32/2008, de 17/07, o disposto no n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal, que o Ministério Público invoca como alicerce principal do que promove.

Com base nessa norma, a obtenção de tais dados será admissível desde que esteja em causa crime previsto no n.º 1 e os dados respeitem às pessoas referidas no n,º 4, ambos do artigo 187° do C. P. Penal. Não se estabelece qualquer prazo limite para o acesso a tais dados.

Com a entrada em vigor da Lei nº 32/2008, não pode continuar a sustentar-se a aplicação irrestrita do n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal no que toca ao acesso a todos os dados de tráfego, comunicação ou localização, nomeadamente aos guardados em bases de dados.

O legislador não ignorava a existência de tal norma do C. P. Penal, não pretendeu revoga-la, contrariá-la ou torná-la inaplicável. Visou apenas regular e limitar o modo de conservação e acesso, no tempo e quanto ao fundamento, de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/03/2017, «( ... ) o regime dos artigos 187° a 189°, do CPP, aplica-se aos "dados sobre a localização celular", obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas ( … )».

Assim a obtenção de dados conservados por operadoras de telecomunicações que se enquadrem no elenco do artigo 4° da Lei n.º 32/2008, de 17107, só podem ser acedidos nos termos admitidos por tal diploma, não podendo recorrer-se a "atalhos", como sejam a invocação do disposto no artigo 189° do C. P. Penal ou na Lei do Cibercrime, cujo artigo 11°, no seu n.º 2, estabelece cristalinamente: «as disposições processuais previstas no presente capítulo não prejudicam o regime da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho».

A Lei nº 32/2008, de 17 de Julho dispõe no seu artigo 1 ° que a referida Lei regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e que altera a Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Junho, relativa ao tratamento de dados pessoais e à protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.

No seu art. 2°, nº. 1, al. g) encontra-se a definição de crime grave, ou seja considera-se crime grave para efeito da aplicação da referida Lei ri g) 'Crime grave', crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atas preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima".

Ora, no caso dos autos, investigando-se crime que não integra o catálogo de "crimes graves" para efeitos da Lei n.º 32/2008, de 17/07, não pode aceder-se aos dados conservados pelas operadoras nos termos do artigo 4° desse diploma. E, no que toca a tais dados arquivados, é inaplicável o n.º 2 do artigo 189° do C. P. Penal.

O Ministério Público invoca ainda o disposto no artigo 15° a 17° da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.

Ora o artigo 15° refere-se à pesquisa de dados informáticos, dispondo no seu número 1 que" 1 - Quando no decurso do processo se tornar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência".

O artigo 16° refere-se à apreensão de dados informáticos, dispondo que "1 - Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos"

E no artigo 17.° refere-se que "Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal."

Ora face ao promovido pelo MP e tendo em consideração que o que se pretende obter são dados conservados por operadoras de telecomunicações, desde logo se verifica que os preceitos a que se fez menção não têm aplicação ao caso concreto.

Pelo exposto, indefere-se o promovido. Devolva.

Inconformado, recorre o Ministério Público, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A. Nos presentes autos foi apresentada queixa por AA e BB porquanto, entre os dias 08.10.2021 e 17.02.2022, pessoa que identificam como sendo CC efectuou chamadas do telemóvel com o número ...75 para o seu telemóvel com o número ...94, chamadas telefónicas onde foram, pelos mesmos, audíveis expressões de teor ameaçatório, nomeadamente “que se vai juntar com o filho e com ciganos para vos apanhar e fazer a folha, que podiam todos fugir de casa que os ia encontrar seja onde fosse”, conforme resulta do auto de fls. 27 dos autos.

B. O Ministério Público considera indiciado nos autos a prática do crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, o qual foi praticado por meio de telefone (telemóvel, mais concretamente), de número ...75 para o número de telemóvel ...94, propriedade dos...

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