Acórdão nº 01974/21.3T8LRA.S1-CP de Tribunal dos Conflitos, 13-07-2022

Data de Julgamento13 Julho 2022
Ano2022
Número Acordão01974/21.3T8LRA.S1-CP
ÓrgãoTribunal dos Conflitos - (CONFLITOS)
Consulta prejudicial
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 24 de Maio de 2021, CP – Comboios de Portugal – E.P.E. instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria uma ação contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., e IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo a condenação individual ou solidária das rés a pagarem-lhe a quantia de € 220.665,746, acrescida de juros vincendos, a título de danos sofridos.
Para o efeito, e em síntese, invocou ter sofrido danos em consequência da colisão entre um comboio (explorado por si) e um veículo pesado de mercadorias (seguro na ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.), ocorrida numa passagem de nível situada numa linha de caminho de ferro explorada pela ré IP, tendo o sinistro sido causado
– pelo condutor do veículo de mercadorias, “por inobservância das regras que, enquanto condutor, deve respeitar, na aproximação e transposição das Passagens de Nível”,
– e / ou pela ré IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que esta ré “omitiu o cumprimento do dever de conservação e manutenção daquela PN e do seu equipamento”, omissão que impediu que o maquinista “pudesse imobilizar o comboio antes daquela PN o que, não sucedendo, deu origem ao sinistro em causa, pois o comboio não conseguiu evitar o embate”.
Explicou que demandou as duas rés “por cautela e dever de patrocínio” (artigo 12.º da petição inicial).
As rés contestaram separadamente. Para o que agora releva, ambas invocaram a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, por se tratar de uma acção da competência dos Tribunais Administrativos.
A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., alegou que a ré IP, S.A., é “uma sociedade anónima, que prossegue fins públicos, estando dotada de prerrogativas conferidas ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita à responsabilidade civil extracontratual, no domínio de actos de gestão pública”, sendo “a gestão das infraestruturas de circulação ferroviária (…) um acto de gestão pública”.
Concluiu no sentido de que resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
A ré Infraestruturas de Portugal, S.A., baseou a alegação de incompetência no disposto nos artigos 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio e 23.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, referindo os poderes de autoridade detidos pela ré IP, S.A., necessários à garantia da segurança da circulação e das infraestruturas ferroviárias nacionais sob sua administração.
Por despacho de 22 de Outubro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Cível de Leiria – Juiz ..., foi admitida a intervenção principal provocada de F..., S.A., ao lado da ré Infraestruturas de Portugal, S.A., que a requereu, alegando ter transferido para a seguradora a responsabilidade relativa à gestão da infraestrutura rodoviária, mediante um contrato de seguro.
F..., S.A., contestou; releva agora que também invocou a incompetência material do Tribunal para conhecer da ação. Acompanhando as considerações apresentadas pela ré IP, S.A., concluiu que, por decorrência do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, é à jurisdição administrativa que compete a apreciação do presente litígio.
A autora respondeu à excepção de incompetência e, aludindo à previsão do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, reiterou a competência dos tribunais comuns para o conhecimento da causa.

2. Por despacho de 15 de Março de 2022, o Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Cível de Leiria dirigiu oficiosamente ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos sobre a questão da jurisdição competente para a apreciação do presente litígio.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça admitiu a consulta, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), determinando que se seguissem os termos previstos na mesma Lei.
De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação à jurisdição administrativa: “Tal como a A. configura a acção, verifica-se que o pedido foi dirigido contra uma entidade pública empresarial, que se rege pelo disposto no DL n.º 133/2013, de 3/10.
Esta entidade pública empresarial foi demandada por eventual responsabilidade civil extracontratual derivada da alegada omissão do dever de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional.
Dispõe-se no artigo 4.°, n.° 1, alínea f) do ETAF que "Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(...)
f) - Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público
(...)
Tem-se entendido que esta norma revogou tacitamente a norma contida no artigo 32.° do DL n.° 104/97, de 29/4, citado pela A., na sua resposta de 16/2/22.
Neste sentido, ver os seguintes acórdãos do Tribunal de Conflitos, todos publicados nas bases de dados jurídico-documentais do IGFEJ:
011/10, de 9/9/10, relatado por Adérito Santos;
030/09, de 17/6/10, relatado por Jorge de Sousa;
017/07, de 23/1/08, relatado por Políbio Henriques.
Deste modo, somos de parecer que a competência material para conhecer da presente ação caberá à jurisdição administrativa”.
Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

3. Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente,...

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