Acórdão nº 970/23.0GBABF-A.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Outubro de 2023
Data | 24 Outubro 2023 |
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I - Relatório. Nos autos de inquérito n.º 970/23.0GBABF, foi, no Juízo de Instrução Criminal de … do Tribunal Judicial da Comarca de … (actos jurisdicionais), requerido pelo MP ao Juiz de Instrução Criminal (JIC), ao abrigo do art.º 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (1), a tomada de declarações para memória futura a “testemunha menor de idade (conta 12 anos de idade no momento presente), que é vítima do crime investigado”, vindo este último e “sem prejuízo de o decurso do inquérito vir a alterar o quadro relevante para a questão de que se trata” a indeferir o requerido
Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição): “A. Do regime jurídico aplicável 1. Como resulta do despacho do Ministério Público para apresentação de interrogatório judicial de arguido detido, datado de 2.05.2023, nestes autos investiga-se a eventual prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, al. e) e nº 2, al. a), do C. Penal
-
Estando em causa a prática de um crime de violência doméstica, importa referir o teor da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, transposta para a ordem jurídica nacional através do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro, e a Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro
-
São estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, inclusive o seu art.º 28.º, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral que regula as situações em que é possível a prestação de declarações para memória futura consagradas no art.º 271.º do CPP
-
Crê-se que a Lei n° 112/2009, de 16/09 veio alargar o âmbito da aplicação do Art. 271° do C.P.P., designadamente, no seu art. 33°, prevendo um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica
-
O referido art. 33° dispensa a verificação de quaisquer outros requisitos, e apresentado o pedido, o Juiz deve, no nosso entendimento, proceder à inquirição da vítima no decurso do inquérito, num ambiente informal e reservado, com vista a garantir a espontaneidade e sinceridade das respostas
-
A norma prevista no Art. 33° não pode ser desligada do regime geral estabelecido para a protecção de testemunhas - Lei 93/99, de 14/07, nem de outras disposições da lei em que se insere, que visam assegurar as condições de prestação do depoimento e das declarações em casos de violência doméstica - cfr. Arts 16º, n° 2, 20°, n° 3, 22º, 23º e 32° da Lei n° 112/2009
-
Em obediência às normas constantes dos art. 26º a 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, e pensando sempre na qualidade especialmente vulnerável da ofendida, a primeira coisa que o Ministério Público fez quando o presente inquérito lhe foi apresentado, foi requerer as declarações para memória futura da criança
-
A ofendida AA, cuja tomada de declarações para memória futura foi requerida, tem apenas 12 anos de idade, o que, como se sabe das regras de experiência comum, implica como necessária a obtenção célere e precisa do seu depoimento, evitando-se a sua repetida audição no processo
-
Na verdade, o regime constante no artigo 271° do CPP aplica-se às testemunhas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 28°, n°2, da Lei n° 93/99, de 14-07, e dispõe este preceito, no seu n°1, que durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime
-
Afigurando-se não ter sido posta em causa a vulnerabilidade da testemunha, e mostrando-se adquirida a notícia de um crime e aberto que foi o respectivo inquérito (artigos 241° e seguintes e 262° do CPP) impunha-se, tal como resulta da letra da lei, que a tomada de declarações à testemunha ocorresse o mais brevemente possível
-
A decisão recorrida violou os artigos 67.º-A, n.º 1, alínea b), e 271.º, do Código de Processo Penal, os artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, e o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro
*** B. Da (eventual) aplicação de Suspensão Provisória do Processo 12. Da análise do despacho judicial proferido resulta clara a seguinte conclusão: haver a “séria” probabilidade de a tomada de declarações para memória futura ser (mais) prejudicial à criança, por ser “séria” a probabilidade de a mesma nem sequer vir a ser necessária
-
Não se pode concordar com este raciocínio, por diversos motivos
-
Desde logo porque consubstancia uma violação do princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa), porquanto, na fase do inquérito, a intervenção do juiz de instrução só ocorre para assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido, competindo, exclusivamente, ao Ministério Público, a decisão final de arquivar, acusar, ou aplicar o instituto da suspensão provisória do processo, decisão essa que, como é sabido, como “órgão do poder judicial, dotado de autonomia” obedece a critérios de legalidade e de estrita objetividade
-
Ao fundamentar o despacho de não determinação da tomada de declarações para memória futura com base na probabilidade de vir a ser aplicada a suspensão provisória do processo, o Mmo. Juiz violou o princípio do acusatório, na medida em que, sendo obrigatoriamente distintas as entidades que acusam e as que julgam, não compete ao juiz de instrução (fora dos casos específicos e na sequência de pedido de intervenção do Ministério Público para se pronunciar, em concreto, quanto a uma suspensão provisória do processo) avaliar a existência dos pressupostos e fazer juízos de probabilidade quanto ao teor do despacho final de encerramento do inquérito a proferir
-
Acresce, que não se vislumbram elementos de prova, recolhidos neste inquérito, e que permitam considerar “séria e consistente a possibilidade de os autos virem a desaguar numa suspensão provisória do processo”
-
O Ministério Público, dominus do inquérito, e como referiu no processo a instâncias do Mmo. Juiz de Instrução, não se considera ainda habilitado a fazer tal avaliação para a intervenção desse instituto, porquanto importa ainda recolher um dos elementos mais importantes – as declarações da própria criança
-
Por último, nos termos do disposto no art. 281º, nº 8, do CPP “em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1”
-
Vejamos que neste caso, a vítima tem doze anos de idade, o arguido é o progenitor e a progenitora, outra titular das responsabilidades parentais, terá referido, após a conduta do arguido (como refere o auto de notícia) “foi o teu pai a bater-te, mas podia ter sido eu, quando voltares para casa falamos a sério”
-
Ora, seria um eventual requerimento para a suspensão provisória do presente processo, apresentado pela progenitora (representante legal da criança), no interesse da sua filha? Cremos que os elementos recolhidos sugerem, indiciariamente e por ora, que não
-
Nesta senda, deverá ser julgado procedente o presente recurso, devendo ser ordenada a tomada de declarações para memória futura à criança AA, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça!” O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que se impõe “… no caso, por conseguinte, revogar o despacho recorrido e substituí-lo por outro que dê cumprimento ao disposto no art. 287º do C.P.P..” Procedeu-se a exame preliminar
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, sem resposta
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir
Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa: “O Ministério Público requereu a tomada de declarações para memória futura de uma testemunha menor de idade (conta 12 anos de idade no momento presente), que é vítima do crime investigado. Para sustentar a admissibilidade formal da diligência o Ministério Público invocou, em síntese: Que a testemunha é vítima especialmente vulnerável, nos termos do art. 67º-A nº 1 al. c) do Código de Processo Penal (CPP), O que dá abrigo à requerida diligência, nos termos do art. 24º da Lei nº 130/2015, de 04 de Setembro (Estatuto da Vítima) e do art. 28º da Lei nº 93/99 de 14 de Julho (Lei de Protecção de Testemunhas)
Quanto a motivos substantivos para se realizar a diligência requerida, a fim de o depoimento da testemunha poder ser valorado em julgamento (sem prestação de depoimento na audiência de discussão e julgamento), entende o Ministério Público que a mesma deve ter lugar para acautelar o perigo de “revitimização” da...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO