Acórdão nº 843/22 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Dezembro de 2022
Magistrado Responsável | Cons. Maria Benedita Urbano |
Data da Resolução | 20 de Dezembro de 2022 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO Nº 843/2022
Processo n.º 1283/2021
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Benedita Urbano
(Conselheiro José António Teles Pereira)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. No processo comum n.º 15/20.2GBBRG do Juízo Local Criminal de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o Ministério Público acusou A. pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelos artigos 387.º, n.º 1, 388.º-A e 389.º, n.º 1, todos do Código Penal (CP), tendo o juiz titular do processo, já na fase de julgamento, decidido rejeitar a acusação nos termos que se seguem:
“[…]
Muito embora o crime imputado à arguida seja o crime de maus tratos a animais de companhia previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 1, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29/08, é manifesto, atenta a data dos factos, que o que está em causa é o crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08.
Tal não nos deve impressionar em demasia, uma vez que a única diferença entre os referidos normativos se situa ao nível da moldura penal. O tipo objetivo do crime permaneceu inalterado, apenas se verificando um agravamento da pena aplicável.
Ora, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 867/2021, proferido em 10 de novembro de 2021, […] decidiu julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27º e 18º nº 2 da Constituição.
[P]artilhamos a posição assumida no referido aresto.
Vejamos, de forma necessariamente sucinta, em que termos.
Estatui o artigo 27.º, n.º 1, da CRP que «todos têm direito à liberdade e à segurança».
Por sua vez, nos termos do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
De acordo com tais normativos, o direito penal – enquanto direito fragmentário e de ultima ratio – só ganha legitimidade quando se destina a proteger direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.
Dito de outra forma: a tutela de bens jurídicos pelo direito penal tem de assentar na ordem constitucional vigente.
Ora, o que o acórdão nos vem dizer é que, atualmente, não existe fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, precisamente porque não é possível, no tipo legal de crime, identificar um bem jurídico com consagração/dignidade constitucional capaz de justificar a tutela e a punição que o legislador ordinário decidiu empreender.
Assim sendo, o artigo 387.º, n.º 1, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29/08, ou, no caso concreto, o artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08 (já que a única diferença entre ambos, como já se frisou, situa-se ao nível da pena aplicável) são materialmente inconstitucionais.
Mas a idêntica solução se chega por outra via.
De acordo com as declarações de voto da Senhora Conselheira Joana Fernandes Costa e do Senhor Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, a inconstitucionalidade material não deriva propriamente da inexistência de bem jurídico constitucional capaz de alicerçar a punição, residindo antes na violação do princípio da tipicidade penal que se extrai do n.º 1 do artigo 29.º da Constituição.
A conduta típica ou penalmente proibida tem, efetivamente, de estar descrita de modo especialmente preciso e determinado, de forma que os destinatários da norma incriminadora possam, com segurança, conhecer os elementos objetivos e subjetivos que integram a infração.
Ora, como bem salientaram aqueles Conselheiros, tendo em conta o acentuado nível de indeterminação dos conceitos utilizados na descrição quer do objeto da conduta incriminada – «qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos (…) para seu entretenimento e companhia» (artigo 389.º, n.º 1) –, quer do conteúdo da ação proibida – «infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos» a animal que se encontre naquelas condições, «sem motivo legítimo» (artigo 387.º, n.º 1) – o tipo legal em causa não dispõe de precisão e densidade suficientes que permitam aos potenciais autores do ilícito-típico a antecipação do comportamento proibido.
Em suma: pelos motivos expostos, e na esteira do decidido no Acórdão n.º 867/2021 do Tribunal Constitucional, o artigo 387.º, n.º 3, do CP na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08, é materialmente inconstitucional, razão pela qual recuso a sua aplicação ao caso concreto.
Atendendo a que os factos imputados à arguida A. não são suscetíveis de preencher a previsão de qualquer outra norma incriminadora, os mesmos não constituem qualquer crime.
Pelo exposto, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo MP contra a arguida A. e, em consequência, ordenar o arquivamento oportuno dos autos.
[…]”.
2. O Ministério Público recorreu dessa decisão para o Tribunal Constitucional (TC), ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15.11, na redação que lhe foi dada, por último, pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 04.01 – LTC), indicando como objeto do recurso “a norma do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 20/08, e o artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08”. Trata-se de recurso obrigatório em virtude do preceituado no n.º 3 do artigo 280.º da CRP.
3. O recurso foi admitido no Juízo Local Criminal de Braga, com efeito suspensivo.
4. Já no TC, foi determinada a notificação das partes para alegarem, sendo que apenas o Ministério Público, aqui recorrente, apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“a) Objeto do recurso
1.ª) O Ministério Público interpõe recurso, para ele obrigatório, «nos termos do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, alínea a), 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro» do despacho judicial de fls. 179 a 180v.º [de 9 de dezembro de 2021, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Braga - Juiz 1, proc. comum (tribunal singular) n.º 15/20.2GBBRG], uma vez que «na mesma, não foi aplicada, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, por violação dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 387.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 20/08, e o artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08», pois que «atualmente não existe fundamento constitucional para a criminalização dos maus tratos a animais de companhia, precisamente porque não é possível, no tipo legal de crime, identificar um bem jurídico com consagração/dignidade constitucional capaz de justificar a tutela e a punição que o legislador ordinário decidiu empreender».
2.ª) Uma vez que este é um recurso de fiscalização concreta, a questão de constitucionalidade estará delimitada pela decisão recorrida, in concreto, respeitará aos factos constantes da acusação e às disposições conjugadas do artigo 387.º, n.º 3, e 389.º, n.º 1, do Código Penal, por que vem acusada a arguida.
b) Competência legislativa para «definição dos crimes»
3.ª) É da exclusiva competência da Assembleia da República, legislar, salvo autorização ao Governo, sobre a «definição dos crimes» (art. 165.º, n.º 1, alínea c), competência legislativa penal essa que habilita as «autoridades judiciárias» ao decretamento de «intervenções restritivas» passíveis de sacrificar os direitos, liberdades e garantias fundamentais, de caráter pessoal, nomeadamente a liberdade individual (idem, arts. 26.º, n.º 1, e 27.º, n.ºs 1 e 2).
4.ª) Assim, questão a dirimir nos presentes autos consiste em determinar como poderá ser constitucionalmente justificado, e quais são os respetivos limites, no quadro da sua ‘margem de conformação’, o exercício da competência do legislador para decretar a incriminação expressa pelas disposições conjugadas dos citados n.º 3 do artigo 387.º (Morte e maus tratos de animal de companhia), n.º 3, e 389.º, n.º 1, ambos do Código Penal, por último com a redação da Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
5.ª) Para tanto, a incriminação em causa, como lei restritiva, terá que satisfazer o regime estabelecido no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, em particular, tal incriminação «só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
b) Interesse constitucionalmente protegido
6.ª) O artigo 1.º, que inaugura o texto e os «princípios fundamentais» da Constituição, dispõe, nomeadamente, quanto à «construção de uma sociedade justa e solidária» (na redação que lhe foi conferida pelo artigo 2.º da Lei Constitucional n.º 1/98 (Segunda revisão constitucional), de 8 de julho).
7.ª) Neste caso a expressão ‘princípio’ vale por uma regra jurídica com caráter finalístico ou teleológico, dirigida primacialmente ao legislador, ao qual impõe a consecução de um ‘estado de coisas’, no caso uma sociedade ‘justa’ e ‘solidária’, ou seja, é uma norma-fim ou norma programática.
8.ª) Enquanto princípio ‘fundamental’ expressa ‘valores’ básicos que devem ser prosseguidos, e alcançados, pela sociedade e pelo...
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