Acórdão nº 28/22.0GEMRA.E1 de Tribunal da Relação de Évora, 24 de Outubro de 2023

Magistrado ResponsávelMOREIRA DAS NEVES
Data da Resolução24 de Outubro de 2023
EmissorTribunal da Relação de Évora

Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – RELATÓRIO a. No Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da Comarca de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular de AA, nascido a … de 1985, com os demais sinais dos autos, a quem fora imputada a prática, como autor, de um crime de maus tratos a animal de companhia, previsto no artigo 387.º, § 1.º, 2.º e 5.º, al. b) do Código Penal (CP), com referência ao artigo 388.º-A do mesmo código

O arguido apresentou contestação e arrolou testemunhas

A final o tribunal proferiu sentença, na qual condenou o arguido pela prática, como autor, de: - um crime de maus tratos a animal de companhia, previsto no artigo 387.º, § 1.º, 2.º e 5.º. al. b) e artigo 388.º-A, § 1.º, al.

  1. CP, na pena de 150 dias de multa, à razão diária de 5,50€; e na pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 1 ano

  2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição): «1 – O presente recurso tem por objeto toda a matéria de direito da douta sentença recorrida a qual condenou o arguido pela prática em autoria e na forma consumada, de um crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelos arts. 387.º e 388.º do Código Penal

    2 – Ao condenar, como condenou o arguido nos termos da douta sentença, violou o Tribunal a quo o quadro jurídico constitucional vigente

    3 – A decisão está assim ferida de inconstitucionalidade por violação expressa e grosseira dos arts. 18.º, 27.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa

    4 - Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferido douto acórdão que determine a absolvição do arguido do crime que lhe foi imputado e consequentemente a revogação da pena a que foi condenado.» c. O recurso foi recebido, a ele tendo respondido o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância, defendendo que: «(…) 3 – Dispõe o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal que, a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade

    4 – Por seu turno, dispõe o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos

    5 – De acordo com estas normas, a tutela de bens jurídicos pelo direito penal tem de assentar na ordem constitucional dos direitos e deveres ali consagrados

    6 – Os animais de companhia não são sujeitos de direitos, mas são seres vivos dotados de sensibilidade, com estatuto jurídico próprio, a quem os seus donos devem assegurar o bem-estar e são merecedores de tutela jurídica mais concreta daquela que é reconhecida à fauna em geral (cfr. art.º 278.º Código Penal e art.º 66.º da CRP) e, como tal, a punição do maltrato a animais encontra respaldo em direitos e interesses constitucionalmente protegidos

    7 – Nos termos do disposto no artigo 29.º Declaração Universal dos Direitos do Homem, necessário se torna procurar a génese da tutela penal dos direitos dos animais que, não sendo sujeitos de direitos, não deixa de se impor como imperativo civilizacional, decorrente da perceção de que os direitos humanos se afirmam também através da aceitação de deveres para com os demais titulares de direitos, ou seja, para com a sociedade em geral

    8 – Assim, entende-se que o bem jurídico encontra-se tutelado pela norma, centrado nos deveres que sobre o comum dos cidadãos recaem, e não diretamente na vida, integridade física ou bem-estar dos animais de companhia

    9 – Nestes termos, inexiste qualquer inconstitucionalidade material do artigo 387.º do Código Penal.» d. Neste Tribunal Superior o Ministério Público pronunciou-se nesse mesmo sentido, pugnando pela manutenção do julgado

  3. No exercício do contraditório o recorrente nada acrescentou. Cumprindo apreciar e decidir

    II – FUNDAMENTAÇÃO A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1). Em conformidade com esta orientação normativa, a motivação do recurso deverá especificar os fundamentos do mesmo e formular as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida

    É nesse contexto que constatamos estar suscitada apenas uma questão de direito: i) a inconstitucionalidade do tipo de ilícito previsto no artigo 387.º CP, por vulneração dos artigos 18.º, 27.º e 62.º da Constituição. B. Os termos da causa O tribunal recorrido considerou provado o seguinte quadro factológico: «1. No dia 21.03.2022, em hora não concretamente apurada, na …, em …, o arguido AA, aproximou-se do canídeo de raça indefinida, que ali se encontrava

    1. De súbito e sem que nada o justificasse, o arguido, desferiu três tiros de caçadeira no mencionado canídeo

    2. Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o canídeo faleceu no local

    3. Após, o arguido transportou o cadáver do canídeo para dentro do seu veículo automóvel para se desfazer do mesmo

    4. O arguido ao atuar da forma descrita, agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente aquele canídeo e de lhe provocar a morte, com recurso a uma arma, sem qualquer motivo que o justificasse, bem sabendo que se tratava de um animal de companhia

    5. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas, supra descritas, eram proibidas e punidas por lei penal

      Mais se provou que: 7. O arguido tem cerca de 20 cães a seu cargo

    6. O arguido encontra-se desempregado, a auferir subsídio de desemprego no montante de aproximadamente 400€

    7. O arguido vive com a esposa e dois filhos, de …e … anos de idade, em casa própria. 10. O arguido suporta um crédito bancário o montante de 200€ por mês

    8. O arguido tem o 12º ano de escolaridade

    9. O arguido não tem antecedentes criminais.» C. Da inconstitucionalidade material da norma incriminatória prevista nos artigos 387.º do Código Penal Sob a epígrafe «morte e maus tratos de animal de companhia» dispõe o artigo 387.º CP, que: 1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal

      2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço

      3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias

      4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal

      5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:

  4. O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal; b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos; c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil.» Constando o conceito de animal de companhia no artigo 389.º do mesmo código, o qual tem o seguinte teor: «1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia

    2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos

    3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.» A sentença recorrida afirma nos factos provados que o arguido abateu intencionalmente um canídeo, que era um animal de companhia. E com isso considerou verificado ilícito, previsto no artigo 387.º, § 1.º, 2.º e 5.º, al. b) com referência ao artigo 388.º-A, § 1.º, al. a) e 389.º, todos do CP...

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