Acórdão nº 154/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Fevereiro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução17 de Fevereiro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 154/2022

Processo n.º 532/2021

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3 . ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., sendo recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 5 de maio de 2021.

2. O aqui recorrente impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, datada de 18 de fevereiro de 2020, que decretou a cassação da carta de condução n.º BG-6881 de que aquele era titular, em virtude de ter perdido todos os pontos de que dispunha, nos termos do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto.

Por sentença de 3 de novembro de 2020, o Tribunal da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Mangualde, julgou improcedente a impugnação judicial, confirmando a decisão administrativa de cassação da carta de condução do recorrente.

Tal sentença veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra que, através de acórdão de 5 de maio de 2021, negou provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente.

Com interesse para os autos, pode ler-se na fundamentação desse aresto:

«Invoca o recorrente que o disposto no art.º 148.°, n.°s 4, al. c), 10 e 11 viola os artigos 18.°, n.° 2, 29.°, n.° 5 e 30.°, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa. Vejamos:

O art.º 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa estabelece que a lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Ora, a compressão do direito do recorrente de ser titular de carta de condução, prevista no art.º 148.°, n.° 4, al. c), do Código da Estrada, tem na sua base o confronto deste direito com o direito dos outros cidadãos em circularem na vida pública com segurança, assumindo aqui particular relevo as medidas legislativas adotadas para prevenção e combate à sinistralidade rodoviária, nomeadamente o combate às atividades suscetíveis de elevar o perigo na condução e, em consequência, a sinistralidade - como sucede com a condução sob o efeito do álcool ou de substâncias psicotrópicas.

Resultando da sinistralidade rodoviária a ameaça dos direitos à vida e à saúde, o direito do recorrente a ser titular da carta de condução cede perante aquele, que constitui o direito supremo de qualquer pessoa.

Em segundo lugar, o art.º 29.°, n.° 5, da Lei Fundamental consagra que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime" (ne bis in idem). Este princípio visa assegurar que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez em virtude da prática dos mesmos factos.

No entanto, não é o que sucede in casu.

O recorrente foi condenado nos processos sumários n.°s 49/17.4GAFAG e 76/19.7GCTCS pela prática de crimes de condução em estado de embriaguez, tendo-lhe em ambos sido aplicada a pena acessória de proibição de conduzir, nos termos do art.º 69.°, n.° 1, al. a), do Código Penal.

O processo administrativo instaurado contra o recorrente pela Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, que desaguou na cassação da sua carta de condução, teve como objeto não a prática daqueles crimes, mas antes "o registo de infrações relativas ao exercício da condução a perda de pontos em virtude das sucessivas penas acessórias até ao total esgotamento dos créditos inicialmente concedidos, e a consequente inaptidão do recorrente para a condução decorrente do risco causado por aquelas condutas criminosas para a segurança rodoviária" (cf. Ac. desta Relação de Coimbra de 13.11.2019, Des. Vasques Osório, proc. 186/19.0T8CTB.C1, em www.dqsi.pt ).

Na verdade, assentando a cassação administrativa da carta de condução num juízo de perigosidade acrescida daquele concreto condutor no exercício da condução, decorrente da sucessiva prática de crimes ou contraordenações suscetíveis de colocar em risco valores jurídicos considerados mais elevados, a sua génese não reside na prática dos factos anteriormente julgados, mas antes no juízo, baseado em regras fixadas, de que as penas acessórias aplicadas foram insuficientes para sensibilizar o infrator "no sentido de adequar aquela atividade perigosa, em que se traduz a condução, às normas" (cf. Ac. desta Relação de 6.11.2019, Des. Maria José Nogueira, proc. 4289/18.0T8PBL-C1; cf. ainda o Ac. de 15,1.2020, proc. 576/19.9T9GRD.C1, no qual a presente relatora foi adjunta, o Acs. da Relação de Évora de 20.10.2020, proc. 218/20.T8TMR.E1, e de 3.12.2019, proc. 1525/19.0T0STB.E1, o Ac. da Relação de Guimarães de 27.1.2020, proc. 2302/19.31T8VCT.G1, em www.dgsi.pt.)

Desta forma, a cassação da carta de condução devido à perda de pontos não constitui uma nova condenação pela prática dos mesmos factos - crimes de condução em estado de embriaguez não se mostrando violado o princípio ne bis in idem.

Finalmente, o art.º 30.º, n.º 4, que "Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos".

A automaticidade da cassação tem pressuposta uma ponderação que foi anteriormente efetuada pelo legislador, bem como o controlo das condições exigidas para a sua aplicação.

Por esclarecedor, louvamo-nos na análise da Relação do Porto (Ac. de 9.5.2018, proc. 644/16.9PTPRT-A.P1, Des. Mota Ribeiro, em www.dasi.pt):

O sistema de pontos "traduz apenas uma técnica utilizada pelo legislador para sinalizarem termos de perigosidade os efeitos que determinadas condutas ilícitas penais ou contraordenacionais podem vir ou não a ter no futuro, (...) reavaliação essa que poderá culminar com a aplicação de uma medida de segurança, mais precisamente com a decisão de cassação da respetiva carta de condução. (...) o sistema de pontos tem um sentido essencialmente pedagógico, seja pela subtração de pontos efetuada proporcionalmente em função da gravidade de uma infração concretamente cometida, seja pela sua concessão, nos termos supra referidos, estimulando desse modo o condutor para comportamentos estradais de índole positiva, sendo que aquela subtração, a designadamente a que está diretamente em causa nos presentes autos, ocorre como efeito automático da infração cometida, sem que assuma, no entanto, em si, qualquer natureza sancionatória, sendo apenas reflexo ou um índice da gravidade da infração cometida e do relevo que esta possa ter no somatório de outras, tendo em vista aferir a dada altura a perigosidade do titular da licença de condução, em termos de saber se esta última se deve ou não manter, nos termos em que foi concedida pela administração. O sistema de pontos será assim também um sistema que permitirá à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela. (...) (entendeu) o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução; enquanto que a segunda (cassação) se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização/habilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efetivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais

No mesmo sentido, afirma-se no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 260/2020 (dr n.° 147/2020, II Série, de 30.7.2020) que "a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condução negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular . O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado " (sublinhado nosso),

Assim, tendo em consideração que o sistema de carta de condução por pontos prevê, em função da gravidade da infração do condutor, a retirada de pontos, em número variável; e considera o período temporal sem registo de infrações a favor do condutor, acrescentando-lhe pontos e permitindo, desse modo, que recupere os eventualmente perdidos; impõe-se concluir que respeita os princípios da necessidade e da proporcionalidade.

Conclui-se, pelas razões expostas, pela conformidade das normas constantes do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), n.º 10 e n.º 11 do Código da Estrada, com os princípios e imposições constitucionais vigentes.»

3. Foi desta decisão que foi interposto o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) e n.os 10 e 11, do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto.

Determinado o prosseguimento dos autos, o recorrente produziu alegações, que sintetizou nas seguintes conclusões:

«I - O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão que proferiu, capeando a decisão proferida em Primeira Instância, aplicou normas inconstitucionais, nomeadamente as contidas no artigo...

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