Acórdão nº 215/23 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Abril de 2023

Magistrado ResponsávelCons. Gonçalo Almeida Ribeiro
Data da Resolução20 de Abril de 2023
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 215/2023

Processo n.º 531/2022

3.ª Secção

Relator: Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC»), do acórdão daquele Tribunal, de 26 de abril de 2022.

2. O aqui recorrente impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, datada de 29 de setembro de 2020, que decretou a cassação da carta de condução n.º BR-473911 de que era titular, em virtude de ter perdido todos os pontos de que dispunha, nos termos do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto.

Por sentença datada de 29 de junho de 2021, o Tribunal Judicial da Comarca de Braga julgou improcedente a impugnação judicial, confirmando a decisão administrativa de cassação do título de condução.

Inconformado, o impugnante interpôs recurso de tal sentença para o Tribunal da Relação de Guimarães. Por via do acórdão ora recorrido – de 26 de abril de 2022, – esse Tribunal negou provimento ao recurso.

3. Foi desta decisão que foi interposto o presente recurso de constitucionalidade.

Determinado o prosseguimento dos autos, o recorrente produziu alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

i. No processo n.° 578/18.2GAEPS, o arguido não foi condenado, por o processo ter sido suspenso provisoriamente, e, cumpridas as injunções fixadas, foi o mesmo definitivamente arquivado, sem, conforme estipula o artigo 282.°, n.° 3 do CPP, poder ser reaberto.

ii. Não se pode extrair da suspensão provisória do processo, os mesmos efeitos de uma condenação judiciai. Naquela o arguido, por vezes, atenta(s) a(s) injunção(ões) propostas desiste de discutir os argumentos que poderiam conduzir à absolvição em julgamento e conforma-se com as injunções fixadas.

iii. O artigo 148.°, n.° 2 do CE prevê que: «2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.° 3 do da injunção a que alude o n.° 3 do artigo 281.° do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

iv. A suspensão acessória do processo nos termos do disposto no artigo 281.° do CPP, nunca pode, com o devido respeito, ser equiparada a uma condenação, como o faz o artigo 148.°, n.° 2 do CE.

v. Com efeito, não existe um julgamento. Nem acarreta o averbamento de qualquer condenação no certificado do registo criminal de qualquer condenação.

vi. Não existindo julgamento, não existindo condenação nem existindo o consequente averbamento no certificado do registo criminal da eventual condenação, o disposto no artigo 148.°, n.° 2 do CE, viola o disposto no artigo 30.°, n.° 2 do Constituição da República Portuguesa, por ficcionar uma condenação.

vii. O artigo 148.°, n.° 2 do CE ao pressupor, para a perda de pontos, uma condenação sem ela existir, viola o disposto no artigo 30.°, n.° 2 da CRP.

viii. O artigo 30.°, n.° 2 da CRP diz que se presume inocente o arguido até trânsito em julgado da sentença condenatória, ora não tendo existido condenação e ainda assim se pressupor a mesma, na aplicação do artigo 148.°, n.° 2 do CE, viola-se a dita disposição constitucional.

ix. O Arguido foi, num dos processos (processo n.° 173/17.3GBPVL), julgado e condenado e no outro (processo n.° 578/18.2GAEPS) viu o processo ser suspenso provisoriamente, na condição de cumprir as injunções fixadas, tendo ambos os processos se extinguido por que cumpridas a pena e injunções fixadas.

x. No presente processo pretende-se aplicar a cassação do título de condução n.° BR-473911, por preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 148.°, n.°s 4,10 a 12 do Código da Estrada.

xi. Tal pretensão, salvo mais douta opinião, viola o princípio "ne bis in idem", previsto no art.0 29.°, n." 5, da CRP (como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais).

xii. O arguido cumpriu a pena e injunções aplicadas no âmbito dos processos supracitados (processo n.° 173/17.3GBPVL e processo n.° 578/18.2GAEPS).

xiii. Ora, ao se pretender aplicar a norma constante do artigo 148.°, n.° 4, 10 e 12 do Código da Estrada, viola-se a norma constante no artigo 29.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa.

xiv. Padece, assim, de não constitucionalidade a norma que determina a cassação do título de condução (artigo 148° do CE), por violação de caso julgado e do princípio de preclusão e da proibição de cúmulo de ações penais.

xv. Está subjacente a esta norma da nossa Lei Fundamental (artigo 29.°, n.° 5 do CRP) e aos princípios enunciados (o princípio "ne bis in idem", caso julgado e do princípio de preclusão e da proibição de cúmulo de ações penais) a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

xvi. No caso sub judice, encontram-se extintas, pelo cumprimento, as injunções aplicadas ao arguido no processo suspenso provisoriamente (578/18.2GAEPS) e no processo de que resultou uma condenação (173/17.3GBPVL).

xvii. O artigo 29.°, n.° 5 da CRP preceitua que "ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime", assim se impedindo que uma mesma questão seja de novo apreciada.

xviii. Do princípio do ne bis in idem resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

xix.Se se entender que a perda de pontos poderá preencher o elemento formal da pena acessória ou efeito da pena, já não preenche qualquer elemento ou pressuposto material.

xx.Com efeito como pressuposto material da aplicação da pena acessória deveria averiguar-se da especial censurabilidade do condutor no caso concreto.

xxi.Contudo, na verdade, tal instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade pratica de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

xxii. O princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso que "proíbe que a restrição [de direitos, liberdades e garantias] vá além do que o estritamente necessário ou adequado para atingir um fim constitucionalmente legítimo", "impõe que se recorra, para atingir esse fim, ao meio necessário, exigível ou indispensável, no sentido do meio mais suave ou menos restritivo que precise de ser utilizado para atingir o fim em vista" (Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Ed. 2004, p. 167).

xxiii. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria, outrossim, uma violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.

xxiv.Ao se aplicar ao arguido uma outra pena (a cassação do título de condução), não só se viola o princípio "ne bis in idem", como se afronta o princípio constitucional da necessidade (da pena).

xxv. Para além da vertente de violação do princípio "ne bis in idem" assinalada, temos também como violadora de tal princípio a circunstância de se pretender aplicar ao arguido a pena de cassação do título de condução cumulada com outra pena de proibição de obter novo título de condução enquanto não decorrerem dois anos desde a cassação.

xxvi. Salvo mais douta opinião, a cumulação da pena de cassação do título de condução com a proibição de obtenção de novo título antes que decorridos dois anos da cassação, é inconstitucional, por violar o princípio "ne bis in idem", consubstanciado uma dupla penalização do arguido pelo mesmo facto.

xxvii. A aplicação da sanção de cassação do título de condução e a sua cumulação com impossibilidade de obter título de condução antes de decorridos dois anos da aplicação da cassação, parece-nos, desproporcionada, desadequada, injusta e desnecessária e como tal não conformes a nossa Lei fundamental, mormente o disposto no artigo 18.°, n.° 2 da CRP.

xxviii. Esta disposição da Nossa Lei Fundamental contempla o princípio da proporcionalidade. Tal princípio, analisa-se em três sub-princípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito). Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão. A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objetivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro. A racionalidade implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido. A falta de necessidade ou de adequação traduz-se em arbítrio. A falta de racionalidade traduz-se em excesso.

xxix. A aplicação ao arguido da sanção de proibição de obter novo título de condução sem que tenha decorrido dois anos sobre a efetiva cassação, viola o princípio "ne bis in idem", previsto no art.0 29.°, n." 5, da CRP (como princípio de preclusão e verdadeira proibição de cúmulo de ações penais).

xxx. Como se referiu supra, o arguido cumpriu a pena e injunções aplicadas no âmbito dos processos supracitados (processo n.° 173/17.3GBPVL e processo n.° 578/18.2GAEPS).

xxxi. Ora, ao se pretender aplicar a norma constante do artigo 148.°, n.° 11 do Código da Estrada, viola-se a norma constante no artigo 29.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa.

xxxvii. Padece, assim, de não...

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