Acórdão nº 738/21 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução22 de Setembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 738/2021

Processo n.º 307/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., S.A. foi declarada insolvente, por sentença de 20/06/2016, proferida no âmbito do processo número 352/16.0T8VFX do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira. O respetivo incidente de qualificação de insolvência foi declarado aberto por despacho datado de 09/04/2018, sendo requeridos A., S.A., B. e C. (os ora recorrentes).

1.1. O incidente de qualificação de insolvência prosseguiu os seus termos, realizando-se a respetiva audiência final, que se estendeu por mais do que uma sessão.

1.1.1. Na sessão da audiência realizada em 03/03/2020, iniciou-se a prestação de declarações pelo Administrador da Insolvência, diligência que teve lugar com a presença deste no Tribunal. Nessa mesma sessão foi proferido o seguinte despacho: “[comunicou] o Ilustre Mandatário dos Requeridos que os esclarecimentos a tomar ao Sr. Administrador de Insolvência decorrerão ao longo de uma hora, com a dedução de eventual incidente. Assim sendo, a fim de permitir o cumprimento do agendamento no apenso H para as 16:00h, declaro suspensos os trabalhos que serão retomados no dia 24/03/2020, às 14:00 (data agendada após audição dos presentes)”.

1.1.2. A sessão de 24/03/2020 veio a ser desconvocada, agendando-se nova data para 15/05/2020, com a seguinte menção: “[…] considerando o disposto no artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, a audiência terá lugar através de meios de comunicação à distância” (sublinhado acrescentado).

1.1.3. Em 04/05/2020, a requerida A. apresentou um requerimento no sentido de “[…] estando perante a continuação de declarações pelo Administrador de Insolvência, tendo o mesmo prestado os esclarecimentos formulados pelo Ministério Público em termos pessoais e presenciais, na sala de audiências, vem dizer que, desde logo em atenção aos princípios do contraditório e da igualdade de armas, não prescinde que o seu contraditório quanto às declarações do Administrador de Insolvência seja realizado em termos presenciais, estando o Administrador de Insolvência presente na sala de audiências e não afastado e recolhido em prestação de declarações em sua casa, onde pode receber indicações de terceiros e consultar apontamentos quer pessoais, quer que lhe sejam transmitidos. Daí que, tendo em atenção o disposto no artigo 7.º, n.º 7, al. b), parte final, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, se requer seja concretizado se a diligência se pode realizar presencialmente” (sublinhados acrescentados).

1.1.4. Sobre o requerimento de 04/05/2020 recaiu despacho datado de 05/05/2020, com o seguinte teor: “[a] questão da observância do princípio da igualdade será apreciada após prestação de declarações por meio de comunicação à distância, em função dos factos que, então, se julguem provados”.

1.1.5. Notificados deste despacho, dele recorreram os requeridos para o Tribunal da Relação de Lisboa [primeiro recurso interlocutório]. Neste recurso alegaram, inter alia, que “[…] nem o facto de se estar perante um processo urgente justifica a criação de uma desigualdade de génese no que à intervenção das partes o processo concerne, sendo que, a considerar-se que tal [o artigo 7.º, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril] permite que uma diligência de inquirição seja concretizada por uma parte de forma presencial e pela outra parte através de meios à distância (que nem sequer videoconferência se trata), então ao mesmo está a ser conferida uma interpretação inconstitucional ao mesmo comando legal […]” e “[nem] o artigo 7.º, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril justifica tal disparidade, desde logo porque o mesmo não justifica que se privilegie uma das partes com um procedimento que é negado à outra parte, sob pena de tornar tal comando legal inconstitucional”.

1.1.6. Na sessão da audiência de 15/05/2020, após a prestação de esclarecimentos pelo Administrador da Insolvência através do sistema Webex, o mandatário dos requeridos requereu que o depoente fosse novamente convocado para comparecer pessoalmente a fim de prestar esclarecimentos.

1.1.7. Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho, proferido na mesma sessão: “[na] pendência da audiência, entrou em vigor o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril (decretou “Medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV2 e da doença COVID-19”), e seu regime de realização de audiências. No caso, estava pendente a prestação de declarações pelo Sr. Administrador da Insolvência, auxiliar da justiça, com inerente estatuto. Destarte, não se configurava, desde logo, violação do princípio da igualdade. As concretas questões hoje elencadas correspondem às vicissitudes próprias das intervenções previstas no regime geral do processo civil, artigo 502.º do Código de Processo Civil, ou seja, inquirição por “meio de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, a partir do tribunal, do juízo, de instalação do município ou da freguesia, quando protocolado, ou de outro edifício público da área da sua residência.”, residência do interveniente. Inclusive, prevê o regime geral do Código de Processo Civil a inquirição de testemunhas residentes no estrangeiro a partir do local da sua residência. Vicissitudes que, inclusive, poderão ocorrer em sede presencial, pois nem sempre as condições climatéricas, ruído proveniente da via pública, obras, etc… permitem o decurso da audiência sem perturbação. Pelo exposto, julgando inexistir violação do princípio da igualdade, indefiro nova convocatória para comparência presencial do Sr. Administrador da Insolvência”.

1.1.8. Notificados deste despacho, dele recorreram os requeridos para o Tribunal da Relação de Lisboa [segundo recurso interlocutório], retomando a argumentação do primeiro recurso interlocutório (transcrita em 1.1.5., supra).

1.1.9. Após realização da audiência final, foi proferida sentença datada de 21/05/2020 que qualificou como culposa a insolvência da sociedade requerida e declarou afetados pela qualificação os requeridos B. e C., decretando a inibição destes para administrarem patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, por 3 e 5 anos, respetivamente, declarou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos mesmos e condenou-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e bem-assim a indemnizarem os credores no montante dos créditos não satisfeitos.

1.1.10. Desta sentença recorreram os requeridos para o Tribunal da Relação de Lisboa.

1.1.11. Por acórdão de 26/01/2021, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou os recursos improcedente. Da respetiva fundamentação consta, designadamente, o seguinte:

“[…]

Invocaram os apelantes que, tendo as declarações por parte do Administrador de Insolvência ao Ministério Publico sido prestadas presencialmente, a prestação de esclarecimentos, em termos de exercício do contraditório pelos recorrentes, com o mesmo AI, através de meios de comunicação à distância, prejudica os princípios da oralidade e da imediação e redunda na diminuição das garantias probatórias por parte daqueles.

Sustentaram ainda que tal procedimento fere os princípios da igualdade, da paridade de armas e do contraditório, constantes dos arts. 3.º e 4.º do Cód. Proc. Civil e que o art. 7.º, n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, não justifica tal disparidade e privilégio de uma das partes em detrimento da outra, sob pena de tal comando ser inconstitucional.

Conforme resulta dos autos, foi requerida pelo Ministério Público a audição do Administrador da Insolvência nos termos do disposto no art.º 139.º, alínea a), do CIRE, aplicável por força do disposto no art.º 188.º, n.º 8, do mesmo código, tendo tal depoimento sido admitido aquando da admissão dos meios de prova – Despacho proferido em 04/05/2018.

Na 1.ª sessão de audiência final, teve lugar a prestação de declarações por parte do Administrador da Insolvência, tendo o mesmo respondido às questões colocadas pelo Ministério Público. A audiência foi gravada em obediência ao disposto no artigo 155.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.

A prestação de declarações não terminou na data em causa, tendo, entretanto, sido publicado o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, enquanto primeira reação do Legislador à pandemia Covid-19. Este diploma veio estabelecer ‘medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19’ e que previa medidas relativas aos atos e diligências processuais e procedimentais nos seus artigos 14.º e 15.º, mas que cedo se revelaram, aos olhos dos intervenientes processuais, como manifestamente insuficientes e desadequadas para fazer face à situação que se vivia (e vive) – nomeadamente, exigindo declarações das autoridades de saúde para justificar ausências, quando estas estavam totalmente envolvidas no rastreamento e tratamento de doentes.

Foi, entretanto, publicada a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, com entrada em vigor a 20/03/2020 e posteriormente a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, que entrou em vigor a 7 de abril (cfr....

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