Acórdão nº 798/22 de Tribunal Constitucional (Port, 17 de Novembro de 2022
Magistrado Responsável | Cons. Assunção Raimundo |
Data da Resolução | 17 de Novembro de 2022 |
Emissor | Tribunal Constitucional (Port |
ACÓRDÃO N.º 798/2022
Processo n.º 510/22
2.ª Secção
Relator: Conselheira Assunção Raimundo
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Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC), do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela, pelo qual esse foro se julgou incompetente para a apreciação da oposição à execução apresentada por A., com fundamento em juízo de inconstitucionalidade material e inerente desaplicação do disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, e na deliberação do conselho diretivo do ISS, IP n.º 793/2020, publicada em DR n.º 152/2020, série II, de 6 de agosto de 2020.
2. O Instituto de Segurança Social, IP (ISS, IP) instaurou ação executiva contra “B., Unipessoal, Lda.”, sociedade comercial sediada em Matosinhos, por contribuições devidas a esta entidade pública. No decurso da execução, o ISS, IP reverteu a dívida contributiva contra o seu gerente, A., por sua vez residente em Paço de Arcos.
Apresentada oposição à execução por A., o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela julgou inconstitucional o disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro e na deliberação do conselho diretivo do ISS, IP n.º 793/2020, publicada em DR n.º 152/2020, série II, de 6 de agosto de 2020, “quando interpretados como [forma de] alteração da competência territorial de um Tribunal Administrativo e Fiscal, designadamente do TAF de Mirandela”, daí extraindo como consequência a respetiva desaplicação e o deferimento da competência para julgamento da oposição à execução ao Tribunal da sede da sociedade executada e devedora primária da quantia exequenda (Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto).
3. Desta decisão o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, como acima relatado e nos seguintes termos:
“O Ministério Público, vem interpor RECURSO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da douta decisão proferida nos autos supra referenciados.
O recurso é obrigatório para o Ministério Público - art. 72º, nº 3, da Lei 28/82, de 15 de novembro.
O recurso tem efeito suspensivo e sobe imediatamente nos próprios autos - art. 78º, nº 2, da Lei 28/82.
Pelo que se requer V. Exa se digne admitir o recurso nos termos do artº 76º da Lei nº 28/82 de 15 de novembro.
(...)
O Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, vem interpor RECURSO OBRIGATÓRIO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da douta decisão proferida nos autos mencionados, nos termos dos artºs 70º, nº 1, al. a), 72º, n.º 1, al. a) e 3, 75º, n.º 1 e 75º-A, da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro que declarou a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redação dada pelo art.º 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela.
Para sustentar a sua decisão seguiu o Mmo Juiz a quo, o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, a competência dos tribunais tributários respeita, prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02 e o princípio do Juiz natural por contraposição à Deliberação do IGFSS, IP, que alterou a competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal.
Pelo exposto, requer-se a V. Exas. a apreciação da inconstitucionalidade declarada. ”
O recurso foi admitido pelo Tribunal “a quo” com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. O recurso foi recebido no Tribunal Constitucional.
O Ministério Público apresentou alegações, pugnando pela negação de provimento ao recurso e concluindo do seguinte modo:
“1. O M.mo Juiz a quo fundamenta o seu despacho recorrido, de 22-02-2022, na interpretação normativa, conclusivamente formulada, no sentido em que «(…) o n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redação dada pelo art.º 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela, são inconstitucionais porque violam o disposto nos art.º 32.º, n.º 9 e art.º 112.º da CRP».
2. Uma tal interpretação normativa afigura-se-nos, por si só, insubsistente no sentido de fundamentar a inconstitucionalidade de qualquer norma, designadamente por suposta por afronta aos artigos 32.º, n.º 9 e 112.º da CRP.
3. Nessa formulação, o M.mo juiz a quo certamente pretenderia mobilizar o ponto 3 da Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., de 2 de Julho de 2020, enquanto fundamento para implicar a alteração dos critérios (legais) de fixação de competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária.
4. Fê-lo noutro passo do despacho recorrido, em que refere que «(…) os preceitos citados, na interpretação referenciada, conferiram a uma "Deliberação" o poder de modificar ou revogar a própria lei de atribuição de competência territorial dos tribunais administrativos e fiscais quanto à natureza especifica e espécie dos processos em causa; e, por outro lado, se os regulamentos assumem uma relação de dependência da lei que visam regulamentar (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, IN CRP anotada, 2005, Coimbra Editora, pag. 260), por maioria de razão uma "Deliberação" não pode contrariar a lei que a prevê nem a Lei da Organização do Sistema Judiciário».
5. Parece-nos, contudo, que tal interpretação não resiste a uma análise mais aturada dos preceitos em causa, designadamente convocando o argumento histórico e a mens legis da génese e alterações do art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2001.
6. Na verdade, é a lei que continua a determinar os critérios de fixação da competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária. Pode, ou não, concordar-se com eles.
7. Não deve é forçar-se uma interpretação de disposições infraconstitucionais – que instrumentaliza o conteúdo de uma “Deliberação”, com suposta “eficácia legal” – para contrariar a finalidade legítima e autorizada do legislador, quanto à determinação do critério de fixação da competência territorial dos tribunais tributários, emergente do art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001.
8. Por isso, em rigor, e para além de, apesar de o recurso ter sido interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do art. 70.º da LTC, a interpretação jurídica sub judice e exarada no despacho recorrido, carece de verdadeira dimensão normativa, o que poderia, desde logo, obstar ao conhecimento do objeto do recurso.
9. Mas, ainda que assim não se entenda, não nos parece que a hipótese subjacente ao recurso encerre verdadeiramente um problema de constitucionalidade, uma vez que o mesmo é ancorado numa dada interpretação de preceitos infraconstitucionais da qual se extrai uma conclusão que, em rigor, não é aplicável ao caso.
10. Pode, por isso, aplicar-se, com propriedade, a consideração expendida no Ac TC n.º 677/2016, segundo a qual:
«Não cabe à jurisdição constitucional, em princípio, sindicar a interpretação que os tribunais comuns fazem da lei ordinária. Assim é porque o Tribunal Constitucional tem a sua razão de ser na especialidade dos problemas que se lhe colocam, e que dizem respeito à interpretação de uma lei diferente das outras – a lei constitucional – e à realização de uma justiça diferente das outras – sobre normas. A interpretação e aplicação das leis ordinárias a litígios é o domínio próprio e exclusivo dos tribunais comuns.
Mas é justamente por essa razão que não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objeto de recursos de constitucionalidade artificiais, ainda que ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Recursos esses em que se não coloca um genuíno problema de constitucionalidade normativa, porque a «norma» desaplicada, não sendo aplicável ao caso, é uma realidade apenas virtual no processo. É isso que resulta do entendimento pacífico de que os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental no processo.»
11. Mas mesmo admitindo que os pontos 3. e 19. da Deliberação 793 do CD do IGFSS, I.P., integrassem a norma, parece-nos que o tribunal a quo – ao não distinguir, desde logo, regras que determinam a competência dos tribunais tributários de 1.ª instância (art. 5.º do Dec.-Lei n.º 42/2001) das regras que determinam a competência dos serviços de execução (art. 3.º-A) – parte da premissa de que as duas são equivalentes; como se, afinal, o legislador – sabendo que o «juiz/tribunal legal» é o juiz/tribunal da área «onde corre a execução» – ao atribuir ao IGFSS, I.P., competência para, por Deliberação, definir em certos casos os serviços «onde correm as execuções» (segundo os seus próprios critérios gestionários), o tivesse “habilitado”, na prática, a “alterar” as regras de competência territorial dos tribunais, ou a codeterminar os tribunais em concreto competentes – não só de 1.ª instância, note-se – por um certo conjunto de casos.
12. Afigura-se, assim, que não deve conhecer-se do objeto do recurso.
13. Para a eventualidade hipotética de assim não se entender, diremos que o recurso merece ser julgado procedente, pelos seguintes fundamentos.
14. Apesar de o art. 32.º, n.º 9, da Constituição conter uma formulação aparentemente imperativa, segundo a qual «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», é...
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