Acórdão nº 755/22 de Tribunal Constitucional (Port, 09 de Novembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução09 de Novembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 755/2022

Processo n.º 264/22

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a), ambos da Lei n.º 28/82 de 15.11 (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Mirandela que se julgou incompetente para a apreciação da oposição à execução interposta por A., com fundamento em juízo de inconstitucionalidade material e inerente desaplicação do disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro e na deliberação do conselho diretivo do ISS, IP n.º 793/2020, publicada em DR n.º 152/2020, série II, de 6 de agosto de 2020.

2. O Instituto de Segurança Social, IP (ISS, IP) instaurou ação executiva contra A., que dirigiu ao Tribunal Tributário de Lisboa. Este foro, por despacho de 11 de agosto de 2021, julgou-se incompetente para apreciar a oposição à execução apresentada pelo executado, com fundamento no disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro.

Na sobredita decisão, o Tribunal faz ver que a ação executiva havia sido instaurada e vinha sendo tramitada pela secção de processo executivo de Vila Real de ISS, IP, aí pendendo à data da dedução de oposição pelo executado, razão por que, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro, a competência para apreciar o incidente ficava conferida ao TAF de Mirandela.

Remetidos os autos ao TAF de Mirandela, este Tribunal julgou inconstitucional o disposto nos artigos 3.º-A, n.º 3 e 5.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 9 de fevereiro e na deliberação do conselho diretivo do ISS, IP n.º 793/2020, publicada em DR n.º 152/2020, série II, de 6 de agosto de 2020, “quando interpretados como [forma de] alteração da competência territorial de um Tribunal Administrativo e Fiscal, designadamente do TAF de Mirandela”, daí extraindo como consequência a respetiva desaplicação e o deferimento da competência para julgamento da oposição à execução ao Tribunal da sede de residência do executado (Tribunal Tributário de Lisboa).

3. Desta segunda decisão o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal Constitucional, como acima relatado e nos seguintes termos:

O Ministério Público, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, vem interpor RECURSO OBRIGATÓRIO para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da douta decisão proferida nos autos mencionados, nos termos dos artºs 70º, nº 1, al. a), 72º, n.º 1, al. a) e 3, 75º, n.º 1 e 75º-A, da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro que declarou a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redação dada pelo art.0 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela.

Para sustentar a sua decisão seguiu o Mmo Juiz a quo, o regime estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, a competência dos tribunais tributários respeita, prevista no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02 e o princípio do Juiz natural por contraposição à Deliberação do IGFSS, IP, que alterou a competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal.

Pelo exposto, requer-se a V. Exas. a apreciação da inconstitucionalidade declarada.

O recurso foi admitido pelo Tribunal “a quo” com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. O recurso foi recebido no Tribunal Constitucional.

O Ministério Público apresentou alegações, concluindo do seguinte modo:

1. O M.mo Juiz a quo fundamenta o seu despacho recorrido, na perspetiva de instalar um conflito negativo de competência territorial entre tribunais tributários de 1.ª instância – concretamente em relação ao Tribunal Tributário de Lisboa, que, por despacho de 11-08-2021, se havia considerado territorialmente incompetente para conhecer da oposição à execução apresentada pelo contribuinte –, delimitando o thema decidendum por remissão para a interpretação normativa supra apontada.

2. Tal interpretação é conclusivamente formulada no despacho recorrido, no sentido em que «(…) o n.º 3 do artigo 3.º-A, do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, na redacção dada pelo art.º 415.º da Lei n.º 2/2020, de 31/03, em conjugação com o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 42/2001, de 09/02, interpretados como uma alteração da competência territorial de um tribunal administrativo e fiscal, designadamente do TAF de Mirandela, são inconstitucionais porque violam o disposto nos art.º 32.º, n.º 9 e art.º 112.º da CRP».

3. Uma tal interpretação normativa afigura-se-nos, por si só, insubsistente no sentido de fundamentar a inconstitucionalidade de qualquer norma, designadamente por suposta por afronta aos artigos 32.º, n.º 9 e 112.º da CRP.

4. Nessa formulação, o M.mo juiz a quo certamente pretendia mobilizar o ponto 19 da Deliberação do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., de 2 de Julho de 2020, enquanto fundamento para implicar a alteração dos critérios (legais) de fixação de competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária.

5. Fê-lo noutro passo do despacho recorrido, em que refere que «(…) os preceitos citados, na interpretação referenciada, conferiram a uma "Deliberação" o poder de modificar ou revogar a própria lei de atribuição de competência territorial dos tribunais administrativos e fiscais quanto à natureza especifica e espécie dos processos em causa; e, por outro lado, se os regulamentos assumem uma relação de dependência da lei que visam regulamentar (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, IN CRP anotada, 2005, Coimbra Editora, pag. 260), por maioria de razão uma "Deliberação" não pode contrariar a lei que a prevê nem a Lei da Organização do Sistema Judiciário».

6. Parece-nos, contudo, que tal interpretação não resiste a uma análise mais aturada dos preceitos em causa, designadamente convocando o argumento histórico e a mens legis da génese e alterações do art. 3.º-A, n.º 3 do Dec.-Lei n.º 42/2001.

7. Na verdade, é a lei que continua a determinar os critérios de fixação da competência territorial dos tribunais com competência em matéria tributária. Pode, ou não, concordar-se com eles.

8. Não deve é forçar-se uma interpretação de disposições infraconstitucionais – que instrumentaliza o conteúdo de uma “Deliberação”, com suposta “eficácia legal” – para contrariar a finalidade legítima e autorizada do legislador, quanto à determinação do critério de fixação da competência territorial dos tribunais tributários, emergente do art. 5.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 42/2001.

9. Por isso, em rigor, e para além de, apesar de o recurso ter sido interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do art. 70.º da LTC, a interpretação jurídica sub judice e exarada no despacho recorrido, carece de verdadeira dimensão normativa, o que poderia obstar, desde logo, ao conhecimento do objeto do recurso.

10. Mas, ainda que assim não se entenda, a hipótese subjacente ao recurso vertente não encerra verdadeiramente um problema de constitucionalidade, uma vez que o mesmo é ancorado numa dada interpretação de preceitos infraconstitucionais da qual se extrai uma conclusão que, em rigor, não é aplicável ao caso.

11. Pode, por isso, aplicar-se, com propriedade, a consideração expendida no Ac TC n.º 677/2016, segundo a qual:

«Não cabe à jurisdição constitucional, em princípio, sindicar a interpretação que os tribunais comuns fazem da lei ordinária. Assim é porque o Tribunal Constitucional tem a sua razão de ser na especialidade dos problemas que se lhe colocam, e que dizem respeito à interpretação de uma lei diferente das outras – a lei constitucional – e à realização de uma justiça diferente das outras – sobre normas. A interpretação e aplicação das leis ordinárias a litígios é o domínio próprio e exclusivo dos tribunais comuns.

Mas é justamente por essa razão que não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objeto de recursos de constitucionalidade artificiais, ainda que ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Recursos esses em que se não coloca um genuíno problema de constitucionalidade normativa, porque a «norma» desaplicada, não sendo aplicável ao caso, é uma realidade apenas virtual no processo. É isso que resulta do entendimento pacífico de que os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental no processo.»

12. Afigura-se, assim, que não deve conhecer-se do objeto do recurso, sem prejuízo de em consequência de tal decisão, ser instalado conflito negativo de competência entre tribunais tributários, a ser dirimido nos termos legais.

13. Para a eventualidade hipotética de assim não se entender, diremos que o recurso merece ser julgado procedente, pelos seguintes fundamentos.

14. Apesar de o art. 32.º, n.º 9, da Constituição conter uma formulação aparentemente imperativa, segundo a qual «[n]enhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior», é duvidoso que se possa retirar daí «uma absoluta proibição da “retroatividade” da determinação do tribunal penal competente» (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, «Sobre o Sentido do Princípio Jurídico-Constitucional do “Juiz Natural”», Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, n.º 3615, p. 85») e, porventura, por maioria de razão, de qualquer outro tribunal. Segundo o mesmo Autor, «(…) o princípio do juiz natural não obsta a que uma causa penal venha a ser...

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