Acórdão nº 736/21 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Teles Pereira
Data da Resolução22 de Setembro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 736/2021

Processo n.º 105/2021

1.ª Secção

Relator: Conselheiro José António Teles Pereira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – A Causa

1. A., S.A. (a ora recorrente) impugnou judicialmente, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, a decisão de indeferimento de reclamação graciosa, tendo em vista a anulação de ato tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), referente a 2017, no valor de €1.665.822,47.

1.1. No Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, foi proferida sentença, datada de 13/07/2020, no sentido da improcedência da impugnação.

1.1.1. Desta decisão recorreu a impugnante para o Tribunal Central Administrativo Sul. Invocou, nas alegações, a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do Regime da CESE.

1.1.2. Por acórdão de 14/01/2021, o Tribunal Central Administrativo Sul negou provimento ao recurso.

1.2. Desta decisão recorreu a impugnante para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – recurso que deu origem aos presentes autos – nos termos seguintes:

“[…]

As normas em causa são os artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, criada pelo artigo 228.º da Lei n.º 83.º-C/2013, de 31 de dezembro.

No entendimento da Recorrente. as normas referidas violam os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da equivalência, emanações do princípio da Igualdade (artigo 13.º da Constituição), da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104.º), ele próprio uma decorrência da capacidade contributiva e da Igualdade, da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º), da livre iniciativa (artigo 61.º), da propriedade privada (artigo 62.º) e da não consignação (n.º 3 do artigo 105.º).

A questão da inconstitucionalidade dos artigos em causa foi suscitada pela Recorrente na petição inicial que deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, designadamente nos artigos 191.º a 596.º.

Para além disso. a mesma matéria é tratada nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal Central Administrativo Sul, concretamente nos artigos 235.º a 537.º e nas conclusões A a P.

[…]” (sublinhados acrescentados).

1.2.1. O recurso foi admitido no Tribunal Central Administrativo Sul, com efeito devolutivo.

1.2.2. No Tribunal Constitucional, o relator determinou a notificação das partes para alegarem, advertindo “de que as razões que determinam o prosseguimento do processo para alegações são, no essencial, análogas às que foram consideradas no Acórdão n.º 597/2020, podendo a recorrente – se com tal se conformar, e apenas nessa hipótese – limitar as suas alegações à questão relativa à constitucionalidade da não dedutibilidade da contribuição extraordinária sobre o setor energético em sede de IRC”.

1.2.3. A recorrente apresentou alegações, que culminaram nas seguintes conclusões:

“[…]

A. O Acórdão do TC n.º 7/2019, em que o Tribunal Central Administrativo – Norte se baseia para proferir a decisão recorrida – não é transponível para o presente processo.

B. Em primeiro lugar, porque o Acórdão não se debruça sobre uma das causas de pedir invocadas pela ora Recorrente: a de que a regra constante do artigo 12.º do Regime da CESE em vigor em 2014, que tem congéneres em todos os regimes que se lhe seguiram, até a atualidade – incluindo no de 2017), ao estipular a proibição de dedução em sede de IRC dos montantes pagos a título de CESE, é inconstitucional – e por isso determina a inconstitucionalidade do tributo.

C. Em segundo lugar, porque o Acórdão limita o objeto do respetivo recurso ao ano de 2014, uma vez que o processo diz respeito a uma liquidação relativa à CESE desse ano, emitida ao abrigo da Lei do Orçamento do Estado respetivo.

D. A A., como grande parte dos sujeitos passivos da CESE, não exerce qualquer atividade no setor electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsetor da eletricidade (a atividade da Recorrente é a de aprovisionamento e distribuição de gás natural), pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do SEN, não beneficiando, pois, de nenhuma forma direta ou especial, da atividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos da CESE).

E. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a A. não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu como objetivo anular ou atenuar (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos da CESE).

F. A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da atuação estadual nesse aspeto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares.

G. Relativamente ao financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, que o legislador também inscreveu formalmente como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objetiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efetivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa. Ora, se não conseguimos para já vislumbrar uma probabilidade séria desse efetivo benefício, tem de ser dar por não provado enquanto comprovado o benefício potencial ou presumido.

H. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a atividade das empresas energéticas que não atuam no setor da produção de eletricidade – no qual se gerou o problema da dívida tarifária e o consequente desequilíbrio orçamental –, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afeta a um objetivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do setor electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares – para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental).

I. De tudo isto sobra que o único objetivo do tributo à luz do qual a sua exigência à Recorrente é percetível (ainda que não juridicamente sustentável) é o objetivo do financiamento das despesas gerais do Estado e da consolidação das contas públicas, um desiderato tipicamente prosseguido através dos tributos unilaterais.

J. Tanto assim é que, desde o início de vigência do tributo até pelo menos 2018, esse foi o único objetivo prosseguido efetivamente pelo Estado com a receita da CESE: dos autos resulta que aquela receita não foi afeta à redução da dívida tarifária do SEN, porque a parte respetiva nunca chegou a ser transferida, para esse efeito, para o Fundo, nem a qualquer outra política tendente à sustentabilidade do setor energético (e mesmo depois de 2018 a receita da CESE é utilizada para os objetivos legais numa proporção muito pequena).

K. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma atividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (direta ou indiretamente, efetiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a atividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos.

L. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto – um imposto especial sobre alguns operadores de um setor de atividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular.

M. A CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13.º da Constituição), porque a sua base de incidência subjetiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da “contribuição” (não são de todo beneficiados com as atividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) – designadamente todos aqueles que não atuam no âmbito do setor da produção de eletricidade, como é caso da ora Recorrente.

N. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objetiva o valor dos ativos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indireta ou presumida aos lucros das mesmas – uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjeturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma coleta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efetivamente nessa forma, ou uma coleta igual ou superior aos lucros efetivamente obtidos, caso em que representará uma taxa de 100% ou mais de tributação do rendimento e, nessa medida, um imposto confiscatório.

O. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade,...

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