Acórdão nº 298/21 de Tribunal Constitucional (Port, 13 de Maio de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Joana Fernandes Costa
Data da Resolução13 de Maio de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 298/2021

Processo n.º 942/2021

3ª Secção

Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa

(Lino Rodrigues Ribeiro)

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional («LTC»), da decisão proferida por aquele Tribunal, em de 24 de setembro de 2019, que recusou a aplicação do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto, com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

2. A decisão foi proferida na sequência da impugnação judicial deduzida pelo ora recorrido contra a decisão administrativa proferida pela Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) em 28 de janeiro de 2019, que lhe aplicou a coima de 3.900 euros, pela prática da contraordenação aeronáutica civil muito grave, prevista no artigo 22.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 163/2015, de 17 de agosto, em virtude de ter feito entrar aeronaves não tripuladas (drones) na área proibida do Aeroporto Humberto Delgado.

Com relevo para a apreciação do presente recurso, lê-se na decisão recorrida o seguinte:

«(...)

2 A Recorrente pretende ver discutidas, entre o mais, designadamente a seguinte questão, assim se delimitando o objeto do recurso: i) ne bis in idem e remessa do processo para inquérito pendente no Ministério Público. Mantêm-se válidos e regulares os pressupostos da instância.

3 Como questão prévia e prejudicial, importa analisar a invocada questão atinente à remessa do processo para inquérito pendente no Ministério Público por prevalência do princípio ne bis in idem.

4 Importa considerar como factualidade relevante para a decisão o seguinte: (i) A. vem condenado pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 22.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 163/2015, de 17 de agosto, porquanto no dia 20 de agosto de 2018 manobrava um drone, com o número de série ES 112324586655, no entroncamento entre a Avenida Estados Unidas da América, n.º 53, e a Avenida Rio de Janeiro, ambas em Lisboa, em zona de proibição de sobrevoo; (ii) Corre termos inquérito sob o número 62/18.4SJLSB, na 5.ª Secção do DIAP Lisboa, no Ministério Público, tendo estes autos sido informados que o objeto discutido é o mesmo nos dois processos, “estando a ser realizadas diligências para apurar se os factos integram a prática de crime ou de contraordenação”.

5 O estado atual da jurisprudência nacional permite afirmar, sem equívocos, que é consensualmente aceite a plena aplicabilidade do princípio ne bis in idem, devidamente plasmado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (“ninguém pode ser julgado mais que uma vez pela prática do mesmo crime”), já no âmbito do direito da mera ordenação social, já quando se interponha uma relação de concurso entre crime e contraordenação por recurso ao conceito material de sanção vastamente trabalhado na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (conferir, entre outros, acórdãos Engel e Outros c. Países Baixos, A. Menarini S.R.l. c. Itália e Grand Stevens e Outros c. Itália), sempre que se afira de uma “identidade substancial” entre as infrações, havendo que perscrutar o bem jurídico tutelado por cada uma das normas punitivas, sendo que quando a Constituição da República Portuguesa refere “julgado mais que uma vez” não alude a um conceito próprio sensu de julgamento, mas a situações análogas e que possam implicar julgamento ou possam acarretar a sujeição do arguido a dois julgamentos pelos mesmos factos - conferir, por todos, acórdão do Tribunal Constitucional nº 244/99, disponível eletronicamente em tribunalconstitucional.pt, Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza; conferir Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações, Da cisão à Convergência Material, pp.256/7.

6 Tal valência e abrangência decorrem inclusivamente de instrumentos internacionais, que se afere despiciendo esmiuçar, mas que se encontram plasmados ora no artigo 4.º, do protocolo adicional nº 7, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ora no artigo 50.º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ora no artigo 54.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen.

7 Ora considerando os factos a atender no caso presente tal como são desde logo assumidos pelo Ministério Público, e olhadas as normas infratoras em causa no âmbito contraordenacional (conferir artigo 22.º, nº 1, alínea f) do Decreto-Lei n,º 163/2015, de 17 de agosto - “Para efeitos da aplicação do regime das contraordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei nº 10/2004, de 9 de janeiro, constituem contraordenações aeronáuticas civis muito graves: A realização de voos em zonas proibidas ou restritas, em violação do disposto na norma SERA 3145 do anexo ao Regulamento de Execução (UE) nº 923/2012, da Comissão, de 26 de setembro de 2012”) e no âmbito criminal (conferir artigo 288, n.º 1, alínea b), do Código Penal: “Quem atentar contra a segurança do transporte por ar, água ou caminho de ferro: b) colocando obstáculo ao funcionamento ou circulação, é punido com pena de prisão de um a oito anos”) logo se compreende a absoluta identidade do bem jurídico, conquanto redunda na segurança do espaço aeronáutico, pelo que de imediato se vislumbra a necessidade de convocar a norma atendível no caso de concurso entre crime e contraordenação. Tal norma, sabendo-se que lex specialis derrogat legi generali, é a constante do artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto (equivalente à solução da Lei n.º 50/2006, no seu artigo 28.º, relativamente ao qual se pode convocar o estudo de Alexandra Vilela, “Crime e contraordenação: por morrerem algumas andorinhas pode acabar a primavera”, disponível eletronicamente em revistas-ulosofona.pt, no qual conclui pela inconstitucionalidade da referida norma) o qual dispõe que se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação aeronáutica civil, o arguido é responsabilizado por ambas as infrações, instaurando-se, para o efeito, processos distintos a decidir pelas autoridades competentes, sem prejuízo da decisão que aplique coima ou sanção acessória caducar quando o arguido venha a ser condenado em processo criminal pelo mesmo facto.

8 Esta norma não só não evita violações do ne bis in idem, como inclusivamente as admite. Isto é, a norma contém enquanto previsão a constatação da violação do princípio constitucional, remetendo em seguida para um remédio, também ele, incapaz de a contrariar. Vejamos.

9 A norma vertente assume que ao arguido possam ser impostos dois processos por infrações idênticas, processos esses a correr simultaneamente, e dos quais possam vir a resultar duas condenações, e tanto basta, considera o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, para concebermos a existência de violação ao princípio constitucional plasmado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

10 Ademais, o remédio sugerido pela lei não o é na verdade, porquanto não esclarece como se processará a caducidade e processo de revisão da sentença judicial, qual o desconto a efetuar na sanção penal e de que modo será feito o desconto, se a coima pode ser imediatamente executada ainda que na pendência de processo-crime, admitindo assim uma suprema desproporcionalidade no lenitivo a que recorre para a violação que consente.

11 Por essa razão, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão entende que a norma plasmada no artigo 12.º do Decreto-Lei nº 208/2004, de 19 de agosto é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

12 Por conseguinte, desaplicada a norma em causa, o Tribunal está impedido de proferir sentença de mérito, porquanto entende que é de aplicar as normas conjugadas nos artigos 20.º e 38.º, n.º 1, do Regulamento Geral das Contraordenações e Coimas, aplicável ex vi artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 10/2004, que determinam a remessa do processo ao Ministério Público para incorporação nos autos de inquérito a correr termos sob o número 62/18.4SJSLB.

13 Em obediência ao mandato constitucional de administrar a justiça em nome do povo, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão decide provir totalmente o recurso e:

Declarar materialmente inconstitucional a norma plasmada no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, e em consequência, não havendo que proferir decisão de mérito, determinar a remessa dos autos ao Ministério Público para incorporação nos autos de inquérito a correr termos sob o número 62/18.4SJSLB, ao abrigo do disposto nos artigos 20.º e 38.º, n.º 1, ambos do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aplicável ex vi artigo 35.º, do Decreto-Lei nº 10/2004, de 9 de janeiro.»

3. Determinado o prosseguimento dos autos, o Ministério Público produziu alegações, pugnado pela procedência do recurso com base nos seguintes fundamentos:

«(...)

Desde logo, a aceitar-se a argumentação do tribunal recorrido, ficaria automaticamente arredada a possibilidade de instauração simultânea, por exemplo, de procedimento disciplinar e criminal, pelos mesmos factos.

Ora, tal solução nunca foi acolhida por este Tribunal Constitucional.

Por exemplo, no Acórdão 635/2015, de 9 de dezembro (...)

10º

Temos, pois, por um lado, a afirmação de que não é confundível o domínio dos ilícitos e sanções criminais com outros tipos de ilícito (designadamente o disciplinar). A Lei Fundamental distingue-os, desde logo, ao nível do âmbito da competência...

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