Acórdão nº 100/21 de Tribunal Constitucional (Port, 04 de Fevereiro de 2021

Magistrado ResponsávelCons. Mariana Canotilho
Data da Resolução04 de Fevereiro de 2021
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 100/2021

Processo n.º 140/2017

2.ª Secção

Relatora: Conselheira Mariana Canotilho

(Conselheiro Fernando Ventura)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. Nos presentes autos, vem o arguido A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC), de despacho proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

2. O presente recurso é incidente de processo criminal, em curso na Instância Local, Secção Criminal, de Vila do Conde, Comarca do Porto. Primeiramente absolvido do crime por que vinha acusado, no âmbito de recurso apresentado pelo Ministério Público, foi o arguido condenado pelo Tribunal da Relação do Porto pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência ao artigo 202.º, todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com condição do pagamento de indemnização civil, no valor de €451,00, na qual foi igualmente condenado.

O arguido não se conformou e interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), impulso que não foi admitido pelo Tribunal da Relação do Porto. Deduzida reclamação, ao abrigo do artigo 405.º do CPP, por decisão proferida em 20 de janeiro de 2017, o Vice-Presidente do STJ preferiu a decisão aqui recorrida, indeferindo a reclamação e confirmando a inadmissibilidade do recurso com fundamento no disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, afastando a violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, suscitada pelo arguido.

3. No requerimento de interposição de recurso é peticionada a apreciação da constitucionalidade de norma «extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admitido recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa».

4. Admitido o recurso pelo tribunal a quo e remetidos os autos, o relator determinou o prosseguimento para alegações, com a advertência para a possibilidade do não conhecimento do recurso na parte relativa à inadmissibilidade de recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena de prisão não superior a cinco anos, quando a decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por não corresponder à ratio decidendi da decisão recorrida.

5. O recorrente apresentou alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«I. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito da reclamação apresentada pelo aqui Recorrente, nos termos do art. 405.º do CPP, foi no sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação não é admissível nos termos do art. 432, nº 1, alínea b) e 400.º, nº 1 alínea e) do CPP.

II. Com o presente recurso pretende o Recorrente que o Venerável Tribunal Constitucional aprecie a norma extraída das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n. º 1, alínea e) e 432.º nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual não é admitido recurso, de acórdãos proferidos em recurso, pelas relações, que apliquem penas não privativas da liberdade ou pena de prisão não inferior a cinco anos, cuja decisão em primeira instância tenha sido absolutória, por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa.

III. Entende o Recorrente que a aplicação daquelas normas viola o direito ao recurso que se inscreve numa manifestação fundamental do direito de defesa, e que está previsto nos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa, bem como no art. 13.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

IV. Conforme resulta dos presentes autos, o Acórdão da Relação revogou a decisão de primeira instância, decisão esta que absolveu o Recorrente do crime que lhe era imputado, tendo aquela decisão sido alterada pelo Tribunal da Relação, condenando-o em pena de prisão de 3 anos, ainda que suspensa na sua execução, vendo-se o mesmo impedido, pela norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver fixada, de interpor recurso, ficando-lhe vedado um direito constitucionalmente consagrado.

V. E não se diga, como resulta da decisão da reclamação aqui em análise que "... o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no art. 32.º, nº 1 da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, já concretizado aquando do julgamento pela Relação…"

VI. Na situação aqui em crise, apesar de ter efetivamente existido dupla jurisdição da causa, nem por isso houve o exercício do direito ao recurso pelo arguido.

VII. Da decisão de primeira instância estava o Recorrente impedido de recorrer, por não ter interesse atendendo à decisão absolutória, impedimento que se mantém com a decisão de revogação da decisão de absolvição por decisão de condenação, nos termos dos artigos cuja inconstitucionalidade se discute no presente recurso.

VIII. Perante este quadro, terá de se concluir que no âmbito dos presentes autos, ao aqui Recorrente é vedado direito ao recurso, direito esse constitucionalmente consagrado.

IX. Em abstrato, as normas aqui em análise permitem que, um arguido que seja absolvido na primeira instância, por recurso interposto pela acusação, venha a ser condenado pela segunda instância, em pena de prisão efetiva de 4 anos, sem nunca ter podido exercer o direito ao recurso.

X. Admite-se o raciocínio do legislador quando limita a apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça às decisões em que se verifica a regra da "dupla conforme", contudo tal já não se poderá admitir quando as decisões proferidas não são consentâneas, ainda mais quando a uma decisão absolutória se sobrepõe uma decisão condenatória, com graves consequências na esfera jurídica do arguido, uma vez que lhe pode ser aplicada uma pena privativa da liberdade, sem que possa reagir à mesma.

XI. A Comissão dos Direitos Humanos já se pronunciou quanto à questão aqui em crise afirmando que a condenação de uma pessoa por um tribunal de segunda instância na sequência de uma absolvição em primeira instância, não pode, em caso algum, menosprezar o direito do arguido à revisão da sentença condenatória por um tribunal superior, uma vez que o artigo 14.º, n.º 5 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos consagra não só o direito ao duplo grau de jurisdição, mas também o direito ao recurso e, nessa medida, impõe que sempre que o arguido seja condenado em sede de recurso possa, ainda assim, exercer o seu direito ao recurso de decisão condenatória, sob pena de violação do referido preceito.

XII. Por seu turno, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem entendido que as restrições ao direito de recurso decorrentes das legislações nacionais dos Estados signatários devem perseguir um objetivo legítimo e não consubstanciarem atentados substanciais ao conteúdo do direito ao recurso, especialmente quando está em causa uma condenação proferida na sequência de uma absolvição na primeira instância, cfr. Ac. do TEDH de 13 de Fevereiro de 2001, caso Krombach v. França.

XIII Ora, Tribunal Constitucional tem, reiteradamente, manifestado o propósito de circunscrever o direito ao recurso à garantia do duplo grau de jurisdição, pelo que, mesmo quanto às decisões condenatórias e a decisões penais que afetem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido, não existe um direito ao esgotamento de todas as instâncias de recurso previstas na lei ou a um terceiro grau de jurisdição que garanta a todos os arguidos a possibilidade de apreciação da condenação pelo STJ.

XIV. Em conformidade com esta linha jurisprudencial o Tribunal Constitucional afirmou, no acórdão n.º 189/2001, que "(...) mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência, no processo penal, da exigência constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual não seja admissível um terceiro grau de jurisdição: ponto é que, com tal limitação se não atinja o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido. Ora, (...) o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior".

XV. Desta opção jurisprudencial resulta ser constitucionalmente aceitável para o Tribunal Constitucional o estabelecimento da irrecorribilidade nos casos de dupla conforme condenatória, em que a Relação confirma a condenação da primeira instância, seja numa pena de multa, seja até certos limites de pena de prisão - cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 189/2001, n.º 1149/2003, n.º 102/2004, n.º 640/2005 e n.º 64/2006.

XVI. Assim, na mesma ordem de ideias, parece resultar como constitucionalmente conforme a admissibilidade de recurso quando seja proferido um acórdão condenatório pela Relação, na sequência de recurso contra uma sentença absolutória;

XVII. A limitação imposta pelos arts. 400.º, nº 1, al. e) do CPP e 432.º, nº 1, al. b) atinge de forma gravosa...

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