Acórdão nº 3935/18.0T8LRA.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Janeiro de 2021

Magistrado ResponsávelMANUEL CAPELO
Data da Resolução14 de Janeiro de 2021
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Relatório AA, intentou a presente acção declarativa comum, contra Bomcar Automóveis, S. A., alegando que intentou uma acção contra BB a qual veio a ser julgada improcedente por decisão já transitada; que nessa sentença provou-se que o referido BB adquiriu um veículo ... à ré, o qual foi facturado a favor da autora; que esta assinou uma segunda declaração de compra e venda do mesmo veículo, na qualidade de vendedora, que foi entregue e ficou na posse do referido BB; que este registou o novo veículo adquirido em seu nome; que não se provou nessa acção que tenha sido a autora a adquirir, para si, o veículo novo adquirido à ré, nem a proveniência do dinheiro utilizado para pagar o remanescente do preço do veículo; que ficaram por esclarecer as razões porque a autora emitiu, no dia 07/02/2007, um cheque no valor de € 30.180,00; que se a ré nada vendeu à autora e esta nada lhe adquiriu, falta justificação para que aquela tivesse recebido e feito seu o valor do cheque, sendo nestes termos que formula como pedido: - ser a ré condenada a restituir o quantitativo nele aposto e juros, de harmonia com as regras da responsabilidade civil extracontratual (dado que não existiu qualquer contrato com a autora) ou, subsidiariamente, pelo regime do instituto do enriquecimento sem causa; condenada a ré a reconhecer que o contrato de compra e venda respeitante ao veículo adquirido foi celebrado com o referido BB, réu na referida acção; a reconhecer que esse negócio foi simulado e a proceder à anulação de uma factura/recibo que identifica emitida no dia .../12/2006 em nome da autora, substituindo-a por outra, com o mesmo conteúdo, emitida em nome do referido BB como comprador, e a pagar à autora a quantia global de € 36.216,00, e juros nos últimos cinco anos sobre o valor de que se apropriou na data da celebração do negócio, desde a citação e até efectivo e total reembolso.

A ré contestou alegando que a petição é inepta; a restituição da quantia de €36.216,00, e juros, por enriquecimento sem causa, se encontra extinta mostrando-se também caduco o direito de pedir a anulabilidade do negócio de compra e venda.

O tribunal em primeira instância no despacho saneador julgou procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela ré Bomcar - Automóveis, S.A. e, em consequência, absolveu-a dos pedidos, considerando ainda que quanto à invocada nulidade do negócio de compra e venda, por simulação a autora não poderia aproveitar-se dos efeitos da simulação, porquanto esta só aproveita a terceiros de boa-fé, entre os quais se inclui a ré, e não aos próprios simuladores, entre os quais se inclui a autora concluindo pela irrelevância da apreciação da ineptidão da pi. e caducidade do direito de pedir a anulabilidade.

Inconformada com esta decisão a autora interpôs Apelação na qual defendeu a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos com realização de julgamento e produção de prova O Tribunal da Relação veio a decidir que a petição inicial era inepta por falta de causa de pedir e julgou a apelação procedente revogando a decisão proferida por procedência da excepção dilatória da nulidade de todo o processo e absolvendo a ré da instância.

De novo inconformada com esta decisão a autora interpôs dela Revista concluindo que: “1ª. A ineptidão da petição inicial é uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, determinante da absolvição da instância e que obsta ao conhecimento de mérito da causa (artºs 576.º, n.º 1, 577.º, alínea b) e 578.º do CPC).

  1. ideia que lhe subjaz é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objecto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correcto e coerente acto de julgamento.

  2. O acórdão recorrido concluiu que “A AUTORA NÃO ALEGA OS FACTOS QUE SERVEM DE FUNDAMENTO À ACÇÃO E NECESSÁRIOS À PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS FORMULADOS”, concretizando que, relativamente aos itens 1 a 7 e 13 a 17, “... TÃO SOMENTE RELATA A DECISÃO ANTERIORMENTE PROFERIDA SEM MANIFESTAR A SUA ADESÃO À FACTUALIDADE QUE NA MESMA FOI JULGADA PROVADA”, o que, salvo o devido respeito, não tem o mínimo de equivalência nem com a matéria de facto efectivamente carreada na petição inicial nem com a jurisprudência claramente dominante no tocante à forma de invocar esses factos por remissão para outro documento dos autos.

  3. Ora, relativamente aos factos alegados nos itens 1 a 7 da petição que em grande parte são integrantes das decisões proferidas na acção com processo comum nº .../15 que a autora instaurou contra BB na Instância … Cível – Unidade … – do Tribunal Judicial da Comarca de …, factos que, contra o decidido, tinham toda a razão de ser uma vez que eram ESSENCIAIS para o tribunal formular um juízo sobre a legitimidade da ré, do prosseguimento da acção e até da sua eventual procedência. Sem essas alegações concretas o petitório seria ininteligível; já no concernente com os itens 8 e 9, revelando discordância com o decidido na acção, invoca as razões lógicas dessa discordância; os itens 10 a 12 e 18 a 25 não deixando de ser “conclusões jurídicas”, têm a virtualidade, pelos factos carreados, de servir de fundamento aos diversos pedidos formulados.

  4. Até porque “Embora a posição tecnicamente mais correcta seja a de referenciar concretamente na petição inicial os factos em que assenta a acção, é também admissível que parte desses factos resultem de documentos suporte para os quais a petição remeta, sem que isso provoque ineptidão da petição inicial ” (Ac. TRP 27/11/2001), o que quer dizer que a invocação dos factos que fundamentam o pedido não carecem de alegação expressa e total, podendo ser extraídos ou complementados pela remissão para qualquer documento junto aos autos (até à prolação do despacho saneador).

  5. Mas, a FALTA da causa de pedir não pode confundir-se com a sua INSUFICIÊNCIA; a primeira dá lugar à ineptidão da petição inicial, enquanto a segunda pode determinar o convite para o seu aperfeiçoamento ou mesmo a improcedência da acção.

    Diz-se na lição do Prof. Alberto dos Reis (in Comentário, 2º, 364 e 371) que “se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta. Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga ”.

  6. E, “ nesta conformidade, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedir” (cfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015). 8ª. Nem se afigura difícil, tomando por referência uma pessoa apenas normal e minimamente escorreita, ou seja o “homem médio”, verificar como o acórdão recorrido anda muito longe da realidade e protagoniza uma decisão de que a Justiça se não pode orgulhar. Na realidade, por pura inadvertência e, ao contrário do que consta do relatório do acórdão em recurso, não se atentou que a autora, embora discordando, aderiu in totum à factualidade dada como provada no Ac. TR… que decidiu o processo inicial. E nem podia deixar de ser assim por uma razão de pura lógica: as suas pretensões, muito particularmente, a de restituição do valor do cheque (e respectivos juros moratórios), só poderia ter viabilidade se o veículo automóvel tivesse sido vendido ao BB, como decidido na sentença inicial; por outro lado, como pode compulsar-se do corpo do item 13 da p.i., aduz que , atenta a formação do caso julgado e não por o facto não ter ocorrido, por não estar em condições de comprovar o pagamento do remanescente do valor, adiantando que, para não ser apanhada em “contrapé” e não haver quaisquer dúvidas, a autora instruiu a acção com a certidão de peças processuais referentes ao processo inicial. Parece, pois, não poder duvidar-se que a certidão junta com a petição inicial sob Doc. 1 não foi meramente “DECORATIVA” destinando-se, fundamentalmente, a descrever os factos que suportaram os pedidos, uma vez que todos, designadamente, o de restituição, decorrem da factualidade acolhida nessa decisão.

  7. Da mesma forma, salvo o devido respeito, roça o absurdo dizer-se que o alegado nos itens 8º e 9º revela discordância com o decidido, aduzindo que se encontra provado que foi ela quem pagou a parte do preço cuja restituição pretende. A verdade é que, obstaculizando a quaisquer reticências, a autora que tinha identificado o cheque da sua conta pessoal através do número, alegou também a data da sua emissão, o valor e ainda o endosso para depósito dele constante, certo sendo que, para além do mais, se trata de matéria confessada pela ré.

  8. Mas, repete-se, estranho é que esse cheque tendo sido admitido com multa na audiência de partes, estando no processo (e, portanto, in mundi) não tivesse merecido qualquer pronúncia do tribunal a quo que se alheou por completo da espoliação dessa quantia do património da autora, uma vez que inexistia qualquer causa que a justificasse. Provoca profunda indignação que a alegação expressa do mencionado desfalque patrimonial, com junção do respectivo título que o comprovava à evidência, tivesse sido encarado como não tendo qualquer conexão com o pedido de restituição formulado.

  9. A factualidade aduzida nos itens 18 a 25, matéria “amalgamada”, mas inexoravelmente inteligível e “ligada” às pretensões da autora, reporta-se a situações constantes da certidão do Ac. TR... junto, a que a autora aderiu (nem podia deixar de ser assim...

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