Acórdão nº 1/13.9YGLSB.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Abril de 2015

Magistrado ResponsávelRAUL BORGES
Data da Resolução17 de Abril de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

O Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça, representado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto Coordenador, deduziu a acusação de fls. 840 a 857, contra as arguidas: AA, natural de ---, nascida em ---, ---, Juíza --- no Tribunal ---, residente na ---; e BB, natural de ---, ---, nascida em ---, ---, Advogada, residente na ---.

Imputa o Magistrado do Ministério Público, a ambas as arguidas, a prática, em co-autoria, de dois crimes de peculato, p. e p. pelo artigo 375.º, n.º 1, com referência ao artigo 386.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.

(A referência à alínea c) deve-se, certamente, a lapso, pois trata-se da alínea d), a partir da alteração introduzida pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, e, aliás, referida correctamente no início do despacho de acusação, a fls. 838).

*** A arguida BB requereu, a fls. 881, a prorrogação do prazo previsto no artigo 287.º, n.º 1, com fundamento no artigo 107.º, n.º 6, como aquele do CPP, fundamentando-se na especial complexidade do processo.

Por despacho do Exmo. Conselheiro então instrutor, constante de fls. 891, foi indeferida a requerida prorrogação do prazo.

*** A arguida AA veio requerer a abertura de instrução, conforme requerimento de fls. 954 a 968, de novo, de fls. 975 a 989, e em original, de fls. 993 a 1007, com os fundamentos seguintes (em transcrição integral, incluídos os realces): A. Questão Prévia - Qualificação; Ilegitimidade do Ministério Público 1º A qualificação pelo Ministério Público, como de peculato, do crime por que acusa a Requerente decorre de insustentável interpretação da alínea d) do número 1 do artigo 386º do Código Penal, alargando a ela a qualidade de funcionário.

2° Porém, tal interpretação só faria sentido caso as funções da Cruz Vermelha Portuguesa, in casu, pudessem ser entendidas como integrando o exercício de função pública, administrativa ou jurisdicional, o que não acontece, nem sequer vem alegado.

3º Mas, só nessa qualificação radicaria também a legitimidade do Ministério Público para a ação penal, tendo em conta a inexistência de queixa da Cruz Vermelha Portuguesa (cf. artigos 48.º, 49.º, número 1, do Código de Processo Penal, e 205.º, número 3, do Código Penal) - sem que se admita estarem, em qualquer caso, presentes os elementos do tipo, semelhante ao do peculato, do abuso de confiança.

Assim, por manifesta ilegitimidade do Ministério Público para a ação penal, deve ser declarada a nulidade do presente processo e os autos arquivados.

B. Prova proibida 4º Este processo, no seu desencadeamento, no seu desenvolvimento, na acusação que encerrou o inquérito, assenta na iniciativa, no interesse e na ação da “testemunha” o advogado Dr. CC.

5º Com efeito, como os autos, verdadeiramente ad nauseam, documentam, o Dr. CC é advogado, tendo exercido a advocacia num escritório de advogados onde também a exercia a co-arguida Senhora Dra. BB e o também advogado Senhor Dr. DD, companheiro da Requerente: 6º O Dr. CC: - Denunciou a um amigo, Inspector da Polícia Judiciária, os factos, verdadeiros ou falsos, subsistentes ou insubsistentes, que deram origem a este processo, de que teve conhecimento em virtude de o dito escritório ser, na altura, dele também, e, por força da confiança que os advogados normalmente depositam em Colegas, sobretudo os que trabalham no mesmo escritório, de poder circular livremente nele, de poder aceder livremente, a qualquer hora, a documentos e registos informáticos nele existentes, pertencentes a outros Colegas dele; - Relatou conversas que escutou nas mesmas circunstâncias, de lugar, e nesse contexto; - Fotografou e fotocopiou documentos existentes no mesmo escritório, nas mesmas circunstâncias e no mesmo contexto relacional; - Desenhou, aliás sem especial valor artístico, croquis do escritório, indicando os lugares de trabalho de cada um dos advogados; - Aceitou ser contratado, não sabe a Requerente mediante que contrapartida, propina ou gorjeta, para agir como agente infiltrado e provocador, sob a direção da Polícia Judiciária, no interior de um escritório dele e de outros advogados com quem se encontrava associado e a quem deveria atrair - e trair - a ciladas mais ou menos astuciosas; - E, ao longo do inquérito, foi cumprindo a sua prestação contratual, denunciando, revelando, traindo.

7º Ora, não obstante não existir formalmente entre o Dr. CC, a Dra. BB e o Dr. DD, um contrato de sociedade de advogados, entre eles vigorava um acordo de partilha igualitária, de clientes, de trabalho, de honorários e despesas, embora seja igualmente certo que o entusiasmo do Dr. CC na partilha dos honorários não fosse acompanhado de entusiasmo semelhante na partilha de clientes (que ele não conseguia grangear) e de trabalho (vistas as limitações dele) - foi, aliás, em torno da partilha dos honorários que se gerou entre os três, o Dr. CC, por um lado, e os Drs. DD e BB, algo enfadados com a improdutividade dele, um clima de desacordo que o Dr. CC resolveu, abraçando a carreira de polícia, aliás e afinal, a sua verdadeira vocação.

8º Mas, assim sendo, forçoso será concluir que os clientes de cada um dos três eram clientes de todos eles, cujos interesses todos deveriam solidariamente prosseguir e defender.

9º O que vale por dizer que, sendo - na configuração da acusação - a Requerente cliente da Dra. BB, sê-lo-ia, igualmente, do Dr. CC.

10º Mas valha, ou não, essa configuração, é evidente e óbvio que o Dr. CC violou grosseiramente o segredo profissional, tal como exigentemente o recorta o artigo 87.º, números 1, 2, 3 e 7 do Estatuto da Ordem dos Advogados, 11º Com a necessária consequência de não poderem fazer prova em juízo os factos diretamente ou indiretamente trazidos ao inquérito pelo Dr.

CC - as conversas relatadas, os depoimentos prestados, os documentos copiados ou surripiados, as fotografias, os croquis, os registos informáticos sacados (artigo 87.º, número 5, do mesmo Estatuto).

12º É, aliás, redundante a referência a normas de direito positivo, quando, para fundamento de igual conclusão, bastaria o recurso a normas superiores - as que se encontram inscritas na consciência das pessoas civilizadas e constituem o fundamento da ordem jurídica, considerada como expressão máxima da moral social, da civilidade e da decência – “Em vão me atormento para destruir o remorso que sinto, permitindo com as sacrossantas leis, com o monumento da pública confiança e com a base da moral humana, a traição e a dissimulação”, dizia em 1764, a propósito da traição e dos delatores, o Marquês de Beccaria, no seu fundamental “Dos Delitos e das Penas”.

13º Em suma, é perfeitamente inacreditável o comportamento indecoroso do Dr. CC; mas, mais inacreditável é que ninguém, nesse Alto e Venerando Supremo Tribunal tenha atentado nele, com olhos justos, que ninguém tenha parado para pensar que um processo assim iniciado e prosseguido assente na colaboração de um advogado travestido em polícia, é uma aberração indecente, ilegal e antijurídica que nada permite seja admitida e mantida em uns autos, para mais correndo termos no Supremo Tribunal de Justiça.

Pelas razões evocadas, do direito, e também, por razões elementares de decoro e de higiene processual, devem, então, ser desconsiderados os factos dos autos trazidos pelo Dr. CC, sendo desentranhados deles todos os documentos que exprimam esses factos, em que ele tenha tido intervenção ou que se reportem a intervenção dele, que, porém, devem neles ficar, por linha, para, preservados, servirem para instruir os procedimentos que convenham ao extravagante comportamento deste Senhor advogado (por assim dizer).

14º E o mesmo haverá de requerer - embora sem formular quanto a ela juízo semelhantemente nauseado - da prova constituída por declaração da Senhora Dra. EE: 15º É que, a não ser que se mostre comprovada a dispensa dela, pela Ordem dos Advogados, do segredo profissional (o que a Requerente desconhece tenha acontecido ou não), pelos fundamentos indicados, designadamente os que decorrem da configuração que a acusação empresta às relações entre ela e a Requerente, as declarações dela não poderão valer como prova em juízo, Razão por que deve, igualmente, o auto das suas declarações ser desentranhado e desconsiderado o seu conteúdo, o que sempre terá a utilidade de afastar dos autos uma colaboração probatória obtida como contrapartida da interrupção do procedimento criminal iniciado contra ela, desde logo, abstendo-se de a acusa (sic) o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que conduziu o inquérito.

  1. A má conduta profissional imputada à Requerente. Os projetos de acórdãos elaborados por advogados e advogados estagiários 16º Ocupa-se longamente a acusação em alinhar factos, aliás incontroversos, que colocam a Requerente sob a luz desfavorável do seu passado disciplinar, decorrente de longas pendências de processos a seu cargo.

    17º Meramente para equilibrar os pratos da balança, convém ter em conta que as classificações da Requerente oscilaram sempre entre o Bom, o Bom com Distinção e o Muito Bom e, o que para aqui não parece despiciendo, nunca teve algum dos Acórdãos por ela relatados censurado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

    18º O que induz extrema perplexidade e sentido de patente inverosimilhança quanto à imputação que lhe é dirigida, de “encomendar” a advogados e a advogados estagiários “projetos de acórdãos”, que ela depois subscreveria, fazendo-se passar por autora desses acórdãos, como se os Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça pudessem confundir “projetos de acórdãos” elaborados por advogados de limitada experiência ou por advogados estagiários com os acórdãos que confirmaram, 19º Sempre aqui se relevando que um acórdão (como o próprio nome indica) não é um acto de um solitário Magistrado, antes o produto do trabalho jurisdicional de, pelo menos, três Juízes de Tribunais Superiores, que discutem entre eles a causa e tiram, depois, a decisão.

    20º E a história, mal amanhada, da acusação, de serem os tais projetos os acórdãos que a Requerente...

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