Acórdão nº 569/10.1TATNV.C1 de Court of Appeal of Coimbra (Portugal), 23 de Maio de 2012

Magistrado ResponsávelBR
Data da Resolução23 de Maio de 2012
EmissorCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam, em conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

* I - Relatório.

1.1. O arguido A...

, entretanto já devidamente identificado, submetido a julgamento, sob a aludida forma de processo comum, com intervenção do tribunal singular, porquanto pronunciado pela prática de factualidade que o instituira na autoria material de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, realizado o contraditório, acabou condenado enquanto agente dessa infracção, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), ou seja, na multa global de € 400,00 (quatrocentos euros).

1.2. Desavindo com o teor do sancionamento imposto, interpôs recurso, sendo que, da minuta através da qual motivou tal irresignação, extraiu a seguinte ordem de conclusões: 1. A decisão recorrida tem por temas controvertidos, no entendimento do recorrente, os seguintes: - A comprovada conduta do arguido integra a prática de um crime? - Acaso assim se sustente, a Guarda Nacional Republicana que o constituiu como fiel depositário da viatura automóvel, cominando-o com a prática de um crime de desobediência, p.p.p. art.º 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, detinha poderes para efectuar tal cominação? 2. Apelo a justificar-se, sustenta o arguido, o do regime estatuído pelos art.ºs 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e 16.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro. Com efeito, 3. Este último diploma legal remodelou o sistema de registo de propriedade automóvel, procurando ajustar a execução dos actos de registo à natureza muito especial das coisas que constituem o seu objecto, particularmente caracterizadas pela limitadíssima duração e extrema mobilidade negocial inerentes aos veículos automóveis [do seu preâmbulo].

  1. Neste sentido, comina como crime de desobediência qualificada, dois tipos de situações, integradas no procedimento cautelar específico previsto no art.º 15.º: - Quando provados os registos e o vencimento do crédito, ou quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordena a imediata apreensão do veículo e no acto de apreensão quando não for encontrado o certificado de matrícula (caso em que o “requerido” deve ser notificado para apresentar em juízo no prazo que lhe for designado, sob sanção cominada para o crime de desobediência qualificada [art.º 16.º]; e, - Quando a apreensão, a penhora e o arresto envolvem a proibição de o veículo circular, caso em que “a circulação do veículo com infracção da proibição legal sujeita o depositário às sanções aplicáveis ao crime de desobediência qualificada.” [art.º 22.º].

  2. Há todavia a ponderar, com interesse para a o devido enquadramento do caso sub iudice, no art.º 851.º, do Código de Processo Civil, redacção conferida através do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro.

  3. Atenda-se com particular acuidade que os seus n.ºs 2 e 3, na redacção introduzida pelo aludido diploma, apenas se aplicam aos processos entrados em juízo após a sua entrada em vigor (a saber, 31 de Março de 2009, ex vi do seu art.º 22.º, n.º 1).

  4. Vale por dizer que, in casu, ao processo executivo em cujo âmbito ocorreu a apreensão dos documentos se aplicava, em tese, a anterior redacção desse art.º 851.º.

  5. E que se coloca um problema de sucessão de leis no tempo quanto ao procedimento a observar (pela lei adjectiva) na penhora de viaturas sujeitas a registo e a apreensão dos seus respectivos documentos no âmbito de um processo executivo - que não nenhum dos previstos no citado art.º 15.º.

  6. Porque sendo aplicável esta última redacção do art.º 851.º, ao processo executivo referido em a) dos factos provados e que deu origem à cominação na qual radica os presentes autos, que cominou o arguido na prática de um crime de desobediência em 18 de Novembro de 2009, caso não procedesse à entrega dos documentos nos dez dias após tal notificação, data em que o legislador já havia retirado há muito tal cominação legal do figurino daquele normativo [por força da sobredita alteração à redacção do art.º 851.º, do Código de Processo Civil].

  7. Terá tal sucessão de leis, pese embora operada no domínio da lei civil, relevância para o caso vertente? 11. A resposta sera afirmativa, desde logo porque se não pode afirmar estarmos perante um regime (norma) transitório.

  8. Adjuva a este entendimento, a abordagem efectuada a uma questão similar, concretamente no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 5/2009, publicado no Diário da República, I.ª Série, n.º 55, com data de 19 de Março de 2009, no qual o Supremo Tribunal de Justiça fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que “O depositário que faça transitar na via pública um veiculo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.” 13. Ora, obre o restrito âmbito de aplicação do regime legal do registo de propriedade automóvel - por referência a uma norma similar do art.º 16.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 54/75,de 12 de Fevereiro, doutrinou-se que: “Na verdade, o Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, visou remodelar a matéria de registo de automóveis, propriedade ou outros direitos ou factos com ele relacionados, individualizando os respectivos proprietários, tornar possível o seu tratamento automático e dar publicidade aos direitos inerentes aos veículos automóveis (art.º 1.º).

    ” “E as suas normas prendem-se, sempre, directa ou indirectamente, com questões de registo ou sobre automóveis. Reportam-se sempre a situações que estão previstas como actos sujeitos a registo (artigo 5.º) e procuram regular procedimentos, como a apreensão que visa acautelar a venda do veículo e o direito do credor (cfr., v.g., art.ºs 17.º e 18.º).

    ” “Isso mesmo, alias, consta do respectivo preâmbulo (23).

    ” 14. Significa que para o Supremo Tribunal de Justiça a apreensão em causa (ao lado da penhora e do arresto de veículos especialmente referidos no DL n.º 54/75 e sujeitos a registo) que envolve a obrigatoriedade de entrega de documentos (art.º 16.º, n.º 2) ou a proibição do veículo circular, é coisa distinta da penhora de veículos enquanto penhora de bens móveis sujeita às regras comuns do Código de Processo Civil ou de entrega de documentos, feita através da sua apreensão, mas que foram objecto de referência distinta no mencionado art.º 22.º.

  9. Uma é a apreensão ordenada no âmbito da acção prevista no art.º 15.º, enquanto outra é a apreensão em que, nos termos gerais da lei do processo, a qual se materializa na penhora de veículos, bens móveis sujeitos a registo, sendo certo que a alínea e) do n.º 1 do art.º 5.º usa a expressão “prevista neste diploma” visando tão só a apreensão, não a estendendo à penhora ou arresto.

  10. Este o entendimento que deve colher-se dos normativos indicados, pois que a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (ar.º 9.º, n.º 1, do Código Civil), além de que “na fixação e alcance o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (n.º 3 deste art.º 9.º).

  11. Esse mesmo elemento, de alargado a todo o articulado do diploma não fornece indicação no sentido da aplicação genérica da referida cominação a casos não verificados no seu âmbito.

  12. Âmbito que, vimos, se reporta à apreensão, penhora e arresto, envolvendo a proibição de o veículo circular, como forma de garantir a realização do registo obrigatório, ou de satisfação do crédito hipotecário vencido e não pago ou de incumprimento das obrigações que originaram a reserva propriedade.

  13. Desapareceu pelas razões invocadas a remissão que o n.º 2 do art.º 851.º do Código de Processo Civil, quanto à apreensão dos documentos de viatura automóvel sujeita a registo, fazia para a legislação especial de veículo automóvel requerido por credor hipotecário. Qual seja? 19. Sendo certo que o regime estatuído pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, está na base da notificação que cominou ao arguido o crime de desobediência.

  14. Não parece haver dúvidas que o legislador ao acabar com a remissão em bloco para o regime deste diploma, em detrimento dos art.ºs 161.º e 164.º, n.ºs 3 a 8, do Código da Estrada, que passaram a reger tal matéria, pretendeu deixar de punir a conduta daquele que estando obrigado a entregar os documentos o não faça em crime de desobediência qualificada, conforme decorre da exposição hermenêutica do acórdão de fixação de jurisprudência que se citou.

  15. A consequência para a falta de colaboração do obrigado à entrega dos documentos, não se mostra agora tipificada em nenhum dos artigos do código da estrada para a qual o legislador opera a remissão na nova redacção do n.º 2 do art.º 851.º, do Código de Processo Civil.

  16. Nem se encontrava já tipificado à data em que tal cominação foi feita ao arguido.

  17. O que quer significar que, à semelhança do que sucede com a apreensão de cartas de condução a condenados a sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, que não as hajam entregue nos termos do art.º 69.º, do Código Penal, e 500.º, do Código de Processo Penal, não possam aquelas autoridades cominar sem mais a não entrega de tais documentos com a prática de crime de desobediência, nos termos consentidos pelo art.º 348.º, n.º 1, als. a) e b), do Código Penal.

  18. Tendo desaparecido a remissão legal para o regime jurídico que sanciona o comportamento do arguido faltoso com o crime de desobediência qualificada - à data da pretensa consumação 28/11/2009 (art.º 3.º, do Código Penal) - há que extrair as legais consequências da conduta do arguido (art.º 2.º...

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