Acórdão nº 164/08 de Tribunal Constitucional (Port, 05 de Março de 2008

Magistrado ResponsávelCons. Ana Guerra Martins
Data da Resolução05 de Março de 2008
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 164/2008

Processo n.º 1042/07

  1. Secção

Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins

Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I – RELATÓRIO

1. O presente recurso vem interposto pelo Ministério Público, com natureza obrigatória, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da CRP e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3, ambos da LTC, do despacho proferido pelo Ex.mo Juiz da 8ª Vara Criminal de Lisboa, em 08 de Outubro de 2007 (fls. 225 a 231) que recusou a aplicação do disposto no art. 371.º-A do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual pode o condenado requerer a abertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da natureza ou medida da pena que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminação, por violação do princípio constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos arts. 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº 2, e 282º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa” (fls. 231).

Entre outras considerações, a decisão recorrida entendeu que:

“Por isso, quanto a tais limites, se aceita que atinjam o caso julgado, em salvaguarda a liberdade das pessoas e da igualdade da sua situação face aos demais cidadãos que praticaram idênticas condutas posteriormente (ou que são julgados posteriormente).

Mas este raciocínio já não pode ser aceite sem restrições quanto aos restantes casos que já resultaram em condenação com trânsito em julgado.

Numa primeira linha de argumentação, é verdade que, como se afirma, novamente, no Acórdão n.º 644/98 do Tribunal Constitucional, «a superveniência de uma lei penal cujo conteúdo pudesse, num juízo prospectivo, apontar para a possibilidade de, em concreto, ser mais favorável ao arguido, não obstante este já ter sido condenado por decisão judicial transitada, iria criar uma enormíssima perturbação na ordem dos tribunais judiciais».

Como explica aquele Alto Tribunal (contra o entendimento expresso em alguns votos de vencido), a aplicação de um novo regime penal não é algo de aplicação automática, matemática ou aritmética; implica, isso sim, a realização de um efectivo novo julgamento, ainda que parcial.

Por um lado, o tribunal da condenação não tem de ter a mesma composição (parece mesmo que actualmente nenhum dos juízes do anterior julgamento pode intervir na reapreciação da causa face ao impedimento criado pela revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 28 de Agosto, quanto ao art. 40°, c), desse Código).

Ainda que se defendesse que o tribunal da condenação tinha de ser o mesmo, quando tal já não pudesse acontecer (designadamente em caso de cessação de funções ou morte), apenas a integral repetição do julgamento permitiria a aplicação do novo regime.

Ainda que esteja em causa “apenas” a aplicação de um novo regime penal nenhuma vinculação pode existir para o tribunal quanto ao anterior juízo de culpa, à sua medida ou à consideração dos fins das penas.

No limite estará o tribunal impedido de alterar os factos provados (mesmo a situação pessoal do arguido não poderá ser revista, pois apenas se prevê uma aplicação de um novo regime penal).

Não tendo o caso julgado protecção face a qualquer mudança da lei penal (só se conhecerá do seu carácter mais favorável em concreto depois da aplicação), estar-se-á a obrigar à repetida realização de um juízo sobre a tipicidade dos factos, grau de culpa, fins de prevenção que se faziam sentir, medida e espécie da pena concreta.

Nada obriga à manutenção de tais juízos, que serão feitos por diferentes aplicadores, a menos que o regime jurídico aplicável em concreto se mantenha absolutamente imodificado.

Por exemplo, com a introdução em lei nova de uma alteração na medida abstracta da pena correspondente a uma incriminação não se impõe a correspondente proporcionalidade na medida concreta; como, a propósito da ponderação de uma medida substitutiva de pena anterior, nada obriga ao respeito das considerações adoptadas na anterior condenação.

Mesmo nos casos em que o Tribunal da Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça modificaram a decisão da 1ª instância, é duvidoso que este tribunal esteja vinculado a superiores considerandos.

Em síntese, aplicar um novo regime jurídico não consiste em mera aplicação de aritmética, neutra, mas sempre na realização de um novo julgamento (através da realização de um juízo de culpa, do seu grau, da ponderação humana sobre os fins das penas e da ponderação sobre o valor dos factos).

As razões expostas em primeira linha não se referem, em rigor, a questões de difícil praticabilidade (que são muitas), mas à inaceitabilidade da repetição de um juízo de culpa a propósito de qualquer mudança quantitativa ou qualitativa das penas abstractamente aplicáveis em cada caso concreto.

Não é que se esteja a pretender aplicar a esta situação o disposto no art. 29. °, n.° 5, da Constituição, mas a verdade é que a certeza e segurança jurídicas próprias de um Estado de Direito Democrático impõem que, mesmo a favor de um condenado, não se possa determinar constantemente a reapreciação de uma condenação (note-se o número de alterações só do actual Código Penal, sem ponderação de outra legislação penal).

De outra forma também não se compreende a restrição dos casos em que é possível a revisão das sentenças penais, até porque essa revisão poderia trazer para o condenado mais benefícios do que a aplicação de uma nova lei penal.

É verdade que por esta via existirá alguma diferença entre os condenados, com condenação transitada em julgado, antes e depois da entrada em vigor de uma nova lei penal.

Mas essa desigualdade é, por vezes, inultrapassável, justifica-se pela necessidade social da segurança e certeza jurídicas e tem como limite o que se entende ser, em cada momento, como necessário para um tipo de situação (a desigualdade é inultrapassável nos casos em que a pena cominada na nova lei apenas poderia ser aplicada retroactivamente; os casos mais comuns são, como o dos autos, os dos condenados a pena superiores entre 3 e 5 anos de prisão, cuja suspensão da execução se poderia equacionar face ao estipulado no art. 50. ° do Código Penal, mas em que, a ser concedida tal suspensão, nos termos do disposto no art. 51.°, do Código Penal, os condenados ficariam obrigatoriamente sujeitos a regime de prova com a mesma duração da pena, mas esse período já decorreu em boa parte).

Numa outra linha de argumentação, também sustentada no Acórdão n.º 644/98, não é verdade que as leis de amnistia e os perdões (genéricos ou não) também violem o caso julgado; e a referência a essas figuras é útil precisamente porque permitem compreender o argumento anterior.

Para além do pensamento constante do mencionado aresto, e afastando os perdões singulares, porque esses, sim, põem em causa o princípio da igualdade sem qualquer fundamento de idêntico valor, é fácil verificar que as amnistias e perdões genéricos afectam o conteúdo de uma decisão já transitada em julgado, mas não afectam qualquer juízo concretizado a propósito da condenação e, dessa forma, não violam a protecção do caso julgado.

Ou seja, as amnistias e os perdões genéricos incidem directamente sobre o dispositivo de uma condenação e não sobre a ponderação judicial que levou a esse dispositivo.

Perdoar uma pena de prisão ou amnistiar uma infracção não exige a repetição de um qualquer juízo concreto de culpa e ponderação dos fins concretos das penas próprios de uma condenação, tão-só uma decisão genérica relativa ao resultado da condenação já transitada em julgado.

Pode uma lei nova, ao fazer variar os limites das penalidades correspondentes a uma incriminação, determinar a mesma variação (desde que seja favorável) para todos os condenados com decisão transitada em julgado, sem violação do princípio do caso julgado; e isto ocorre, precisamente, porque não se repete o julgamento ou a condenação (pode, por exemplo, uma lei alterar a pena que consta de uma incriminação que variava entre 30 dias e 5 anos de prisão e passou a variar entre 30 dias e 4 anos de prisão, e determinar que todos os condenados segundo essa incriminação vejam perdoado um quinto da sua pena de prisão).”

2. Perante esta decisão, o Ministério Público fixou o objecto do recurso, para si obrigatório, nos seguintes termos:

“(…) notificado do despacho de V. Exa., com data de 08.10.2007, exarado a fls. 225 dos autos supra referenciados, no qual se recusa a aplicação do disposto no art. 371-A do Código de Processo Penal, com fundamento na sua inconstitucionalidade enquanto interpretado no sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da natureza ou medida da pena que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminação, por violação do caso julgado, ínsito nos artºs 2º, 111º, nº 1, 205º nº 2 e 282º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, dele vem interpor recurso” (fls. 239).

3. Notificado para alegar, o Ministério Público apresentou as suas alegações, cujo teor ora se reproduz:

“1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

1.1. Foi interposto recurso obrigatório pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 70°, nº 1, alínea a) e 72°, nº 1, alínea e), e nº 3, ambos da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, tendo por objecto a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 371°-A do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o condenado pode requerer a reabertura da audiência para aplicação de uma lei nova mais favorável apenas para ponderação da natureza ou medida da pena, que não viola o limite máximo abstractamente fixado para a incriminação, a que a decisão recorrida recusou aplicação por entender verificar-se violação do princípio constitucional de respeito pelo caso julgado, ínsito nos artigos 2°, 111°, nº 1, 205°, nº 2 e 282, nº 3 da Constituição.

1.2. Vai a decisão recorrida buscar o essencial da sua fundamentação à tese que fez vencimento no...

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