Acórdão nº 319/12 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Junho de 2012

Magistrado ResponsávelCons. Pamplona Oliveira
Data da Resolução20 de Junho de 2012
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 319/2012[1]

Processo n.º 300/12

  1. Secção

Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I – Relatório

  1. A. foi condenado pela 2.ª Vara Mista de Loures, em concurso efetivo, pela prática do crime de homicídio, na forma consumada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º do Código Penal e 86º nºs. 3 e 4 do novo regime jurídico das armas e suas munições (NRJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006 de 23 de fevereiro, na redação da Lei n.º 17/2009 de 6 de maio, com a atenuação especial resultante da aplicação do Decreto-Lei n.º 401/82 de 23 de setembro, na pena de 6 anos e 9 meses de prisão e pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º n.º 1 alínea c) do NRJAM, também na redação da Lei n.º 17/2009, com a atenuação especial resultante da aplicação do Decreto-Lei n.º 401/82, na pena de 7 meses de prisão; em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de sete anos de prisão.

    Inconformado, o arguido recorreu para a Relação de Lisboa, argumentando, nomeadamente, que os artigos 131º do Código Penal e 86º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 17/2009, quando aplicados, como o foram, numa relação de concurso efetivo dos crimes nelas previstos e não de concurso aparente das normas respetivas, enfermam de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 29º, n.º 5 da Constituição, por infringirem a proibição de ne bis in idem. Por acórdão de 28 de junho de 2011, a Relação de Lisboa reduziu a pena aplicada ao arguido para seis anos de prisão, e quanto à questão de inconstitucionalidade disse:

    “Apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio agravado pelo uso de arma nos termos do art.º 131º CP e 86º, n.ºs 3 e 4 do NRJAM aprovado pela Lei 17/2009 de 6.5 e detenção de arma proibida do art.º 86º n.º1 al. c) da citada Lei – deverá concluir-se por um concurso efetivo de crimes, como entendeu a decisão ou por um concurso aparente, como sugere o recorrente?

    Vejam-se os ensinamentos de Figueiredo Dias, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes», considera:

    A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou subjetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global

    (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015).

    No Ac.STJ – 5ª secção, de 31.3.2011 no processo n.º 61/10.3 GBLLE da 5ª Secção decidiu-se que :

    A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o ofendido, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.

    O autor citado aponta mesmo como exemplo de concurso aparente um caso como este: «Circunstâncias como, p. ex., a de se utilizar arma proibida (…) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma de concurso aparente» (ob. cit., página 1017).

    Não é, pois, correta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte.

    A utilização de arma proibida relevará apenas na determinação da pena concreta do homicídio.”

    Pretende o recorrente que existe concurso aparente por a detenção ilegal de arma ter sido crime meio relativamente ao crime-fim, o homicídio e nele se ter esgotado.

    Refere o MºPº que como se depreende do doutamente decidido no último acórdão citado, o arguido recorrente cometeu efetivamente o crime de detenção de arma proibida na medida em que, para além do crime de homicídio praticado não ter sido qualificado pela arma, não se tratou de um ato instantâneo como o do citado acórdão, antes ponderado, pois o arguido foi comprar a arma, o que por si só autonomiza o crime de detenção de arma proibida e, nessa medida, crime autónomo do homicídio praticado com essa mesma arma.

    Também o Ac. STJ de 31.3.2011 no processo n.º 361/10.3 GBLLE [5] refere que :

    I - No presente recurso questiona-se a agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º da Lei 5/2006, de 23-02, em relação à pena do crime de homicídio, sendo certo que a agravação ali estabelecida só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».

    II - O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP; pode ser um fator de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não.

    III - O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.

    IV - Outra questão é a de saber se o arguido cometeu efetivamente o crime de detenção de arma proibida: por morte do pai do arguido e da vítima não se procedeu à partilha dos bens existentes, sendo um desses bens uma casa de habitação, com anexos, num dos quais residia o recorrente. A espingarda caçadeira em causa pertencera ao pai do arguido, estava registada em nome da mãe e na altura encontrava-se nesse anexo. Não se sabe a que título ali se encontrava, quem a colocara ali e desde quando ali se encontrava. Sabe-se apenas que a foi...

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