Acórdão nº 610/22 de Tribunal Constitucional (Port, 22 de Setembro de 2022

Magistrado ResponsávelCons. António José da Ascensão Ramos
Data da Resolução22 de Setembro de 2022
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 610/2022

Processo n.º 549/22

2.ª Secção

Relator: Conselheiro António José da Ascensão Ramos

*

Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I. Relatório

1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82 de 11.11 (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de abril de 2022, que negou provimento ao recurso por ela interposto, pedindo a fiscalização do disposto nos artigos 30.º, n.º 1, 256.º, n.º 1 e 375.º, n.º 1, todos do Código Penal (CP), na interpretação segundo a qual “não há identidade factual, portanto não há verificação do idem no âmbito do Principio ne bis in idem, quando se considere que a relação concursal entre o crime de falsificação de documentos, enquanto meio ou instrumento para consumar um crime de peculato, e esse mesmo crime de peculato, é a de concurso efetivo, reclamando esse único desígnio criminoso uma dupla censura penal”.

A recorrente fundamentou o pedido de fiscalização na violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, dos artigos “54º da Convenção de aplicação do Acordo Schengen e 50º na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, aplicáveis por força do n.º 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa”.

A recorrente formulou ainda pedido de reenvio pré-judicial junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [TFUE]), por entender que a apreciação do recurso compreendia a aplicação de Direito da União.

2. A. foi condenada pelo Juízo Central Criminal de Santarém (juiz 4), do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, no que aqui nos interessa e para além do mais, pela prática de um crime de peculato na forma continuada p. p. pelos artigos 375.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, 202.º, alínea b) e 386.º, n.º 1, alínea a), todos do CP, um crime de falsificação de documento na forma continuada, p. p. pelos artigos 256.º, n.º 1, alíneas c), d) e ), 3 e 4 e 255.º, alínea a), ambos do CP, um crime de falsificação de documento, na forma continuada, p. p. pelos artigos 256.º, n.º 1, alíneas a), c), d) e e), 3 e 4 e 255.º, alínea a), ambos do CP, e um crime de branqueamento na forma continuada, p. p. pelos artigos 368.º-A, n.ºs 1, 2 e 3 e 30.º, n.º 2, ambos do CP, na pena única, apurada em cúmulo jurídico, de 6 anos de prisão e na pena acessória de proibição de atividades compreendidas na função pública que desempenhava na conservatória da Chamusca, pelo período de cinco anos.

Inconformada, a arguida interpôs recurso em matéria de Direito, per saltum, para o Supremo Tribunal de Justiça, que, pelo sobredito acórdão de 27 de abril de 2022 (a decisão ora recorrida), negou provimento ao recurso, confirmando integralmente a sentença de 1.ª instância.

3. Interposto o recurso para o Tribunal Constitucional acima relatado, pela decisão sumária n.º 415/2022 o relator decidiu rejeitar o recurso na parte em que colhia fundamento no disposto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, articulado com os artigos 54.º da Convenção de aplicação do Acordo Schengen e 50.º na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, mais concluindo pela desnecessidade de reenvio prejudicial.

No mais, pela decisão sumária apreciou-se o mérito do recurso na fase de exame preliminar, conquanto o respetivo thema decidendum se cingia a matéria objeto de jurisprudência consolidada.

Os fundamentos foram os seguintes, para o que ora importa:

“(…) pese embora tenha interposto o presente recurso ao abrigo da alínea b), do artigo 70.º, da LTC, pretende ver controlada a compatibilidade da interpretação normativa que enuncia para com o disposto nos artigos “54º da Convenção de aplicação do Acordo Schengen e 50º na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, aplicáveis por força do n.º 4 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa”. Ora, tratando-se de fonte convencional, a recorrente pretende que a fiscalização da constitucionalidade se tenha por caracterizada por apelo ao disposto no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que estabelece o Direito europeu como eficaz na ordem jurídica nacional, afastando assim o tipo de recurso previsto no artigo 70.º, n.º 1, alínea i) da LTC e, assim, fugindo às limitações de âmbito temático para ele estabelecidas.

De facto, o recurso ao abrigo da alínea i), 1.ª parte, do artigo 70.º da LTC cinge-se aos casos em que a jurisdição comum haja procedido à desaplicação de uma norma de Direito interno com fundamento em violação de convenção internacional (“Cabe recurso (…) das decisões dos tribunais (…) i) Que recusem a aplicação de norma constante de ato legislativo com fundamento na sua contrariedade com uma convenção internacional”), ou seja, limita-se às situações em que o Direito interno haja sido julgado abrogante de um acordo internacional entendido beneficiar de valor normativo superior sobre ele, levando à recusa pelo Tribunal da aplicação da norma interna.

No caso dos autos e como fica transparente do requerimento de interposição, a questão é o absoluto inverso, ou seja, o Tribunal “a quo” aplicou uma norma de Direito interno abrogando, no ver da recorrente, Direito convencional. Assim, é tomando mão da norma do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa que a recorrente espera poder verdadeiramente contornar os limites aos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, definindo o objeto do recurso por via indireta, ou seja, apelando a uma norma constitucional, mas tendo por escopo fiscalização de inconvencionalidade.

Já se infere do que fica dito, este procedimento não é admissível em sede de recurso de fiscalização concreta e não se insere no objeto necessário dos tipos de recurso previstos nas alíneas b) (por não ter por fundamento a violação de uma norma ou princípio constitucional) ou i) (por não ter por fundamento a desaplicação de uma fonte de Direito interno, oferecendo prevalência a norma constante de convenção). Assim e nesta parte, porque não reúne os pressupostos processuais de que dependeria a sua admissibilidade em função do objeto, o recurso não pode ser admitido.

Esta matéria não é merecedora de controvérsia, entre doutrina e jurisprudência constitucional:

“O Tribunal Constitucional tem afirmado, de modo uniforme e reiterado, que a sua competência, no âmbito da fiscalização concreta, para sindicar da compatibilidade de normas de direito ordinário com uma convenção internacional se circunscreve estritamente aos casos especificados na alínea i) do n.º 1 deste artigo 70.º, pressupondo ou uma recusa de aplicação normativa ou uma aplicação em desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional: os recursos aqui tipificados hão-de ter, deste modo, uma estrutura análoga aos previstos – em sede de fiscalização de constitucionalidade – nas alíneas a) ou g) deste preceito, estando afastada a via de recurso para o Tribunal Constitucional quando o Tribunal «a quo» tenha aplicado a norma de direito interno (…)

Na verdade, no atual panorama jurídico-constitucional, o Tribunal Constitucional não tem poderes para, ao abrigo do disposto na alínea b), fiscalizar uma eventual «inconstitucionalidade indireta» (por violação do artigo 8.º da Constituição) de uma norma de direito ordinário, com fundamento na sua contrariedade ao direito convencional. E, por outro lado, atentos os termos desta alínea i), é manifesto que eles não comportam a admissibilidade de um recurso de fiscalização concreta interposto da «decisão negativa» que aplique a norma de direito interno, apesar da suscitação pela parte da questão da sua desconformidade com certa convenção internacional.”

(v. C. LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, pp. 157-158; v., também, acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 170/92, 185/92, 162/93, 405/93, 354/97 e 122/98, apud op. cit.)

Concluímos desde já, portanto, que o recurso não é admissível nesta parte por força de vício da instância impeditivo da sua apreciação e passível de conhecimento oficioso na presente sede (cfr. artigos 70.º, n.º 1, alínea i), da LTC (…).

Por sua parte, conquanto, em face do exposto, o presente recurso não importará a convocação de fontes de Direito europeu para dirimir a controvérsia, instrumentos dirigidos a assegurar a uniformidade e consistência da sua aplicação no espaço da União não possuem utilidade, seja exemplo o reenvio prejudicial previsto no artigo 236.º do TFUE (acórdão do TJUE de 01.12.1965, proc. 16/65, Schwarze), nada mais havendo a apreciar a esse respeito.

7. Apesar de a formulação constante do requerimento de interposição se mostrar algo confusa, em essência a recorrente imputa vício de inconstitucionalidade por violação do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, à interpretação normativa dos artigos 30.º, n.º 1, 256.º, n.º 1 e 375.º, n.º 1, todos do CP, que qualifique como concurso efetivo a prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de peculato, quando o primeiro se destine a acobertar ou a viabilizar o segundo. O critério adotado pelo Tribunal “a quo”, assente na duplicidade de bens jurídicos lesados, no ver da recorrente, não justifica a abrogação do princípio constitucional de que ninguém pode ser julgado ou punido por aquilo que, entende ela, constitui um mesmo crime, ao menos para efeitos do disposto no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

Ora, sobre o que se deve entender “o mesmo crime” para estes efeitos, com a inerente proibição de duplo sancionamento, o Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de produzir abundante jurisprudência e o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT