Acórdão nº 53/11 de Tribunal Constitucional (Port, 01 de Fevereiro de 2011

Magistrado ResponsávelCons. João Cura Mariano
Data da Resolução01 de Fevereiro de 2011
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 53/2011

Processo n.º 528/10

  1. Secção

Relator: Conselheiro João Cura Mariano

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

No âmbito do processo penal comum que corre os seus termos sob o n.º 345/06.6GGLSB, na 1.ª Secção – Juiz 1, do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, por sentença proferida em 27 de Novembro de 2009, o arguido A. foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de €10,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Anteriormente à realização do julgamento e à prolação da referida sentença, o arguido, por requerimento apresentado em 21 de Setembro de 2009, alegou, além do mais, que se verificava a nulidade insanável, prevista nos artigos 272.º, n.º 1, e 119.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, decorrente da omissão do interrogatório de arguido no decurso do inquérito e da sua prévia constituição como tal.

Por despacho de 21 de Setembro de 2009 foi indeferida a arguida nulidade, tendo então o arguido recorrido desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa.

O arguido interpôs ainda recurso da sentença condenatória e, por acórdão de 5 de Maio de 2010, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento a ambos os recursos interpostos, mantendo inalteradas as decisões recorridas.

O arguido interpôs então recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:

“…ii O recurso visa a apreciação da inconstitucionalidade da norma constante do art. 272º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em conjugação com a norma constante do art. 119º, alínea e), e 120º, n.º 2, alinea d) do mesmo Código.

iii) Quanto interpretadas tais disposições legais — conforme as interpretou o Tribunal a quo - no sentido de a omissão de realização de interrogatório de Arguido no decurso da fase de inquérito ser causa determinante da nulidade sanável prevista no art. 120º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal, sempre daí resultará norma materialmente inconstitucional, em razão da violação dos princípios constitucionais constantes dos arts. 2º, 18.º, n.º 2 e 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

(iv) A inconstitucionalidade acabada de referir foi oportunamente arguida perante o Tribunal de primeira instância, no recurso interposto, em 15 de Outubro de 2009, da decisão mediante a qual, em 21 de Setembro de 2009, aquele Tribunal se pronunciou sobre nulidades várias invocadas pelo Arguido.

v) Tem ainda em vista o presente recurso a apreciação da inconstitucionalidade da norma legal vertida nos art. 291º, n.º 1, do Código Penal, quando interpretada no sentido de prescindir, para efeitos da imputação do resultado-perigo que na mesma se encerra, da aferição de qualquer nexo de imputação que permita ligar uma acção ou omissão do agente a tal resultado.

(vi) Quando interpretado nesse sentido o disposto no art. 291º, n.º 1, do Código Penal, - e foi nesse sentido que a interpretação de tal inciso normativo foi feita pelo Tribunal a quo -, sempre tal interpretação redundaria em norma materialmente inconstitucional, em razão da violação dos princípios constantes dos arts. 2º, 18º, nº 2 e 29º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa.

(vii) Visa ainda o recurso ver apreciada a inconstitucionalidade da norma legal constante do art. 69º, n.º 1, alínea a), quando interpretada no sentido segundo o qual, com a condenação pela prática dos crimes previstos nos arts. 291.º e 292º, do Código Penal, tem lugar, de forma automática, a aplicação da sanção acessória consistente na inibição de conduzir, interpretação essa que foi sufragada pelo Tribunal a quo.

(viii) Quando interpretada nesse sentido a norma legal constante do art. 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, não poderá a mesma deixar de saldar-se em norma materialmente inconstitucional, em razão da violação dos princípios constitucionais constantes dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 29º, n.º 1 e 30, n.º 4, todos da Constituição da República Portuguesa.

(ix) As inconstitucionalidades referidas nos pontos (v) a (viii) supra foram suscitadas em sede de recurso da decisão final proferida pelo Tribunal a quo, recurso esse que deu entrada nesse Tribunal em 11 de Janeiro de 2010.

(x) A decisão sobre as inconstitucionalidades suscitadas terá efeito decisivo sobre a análise do thema decidendum…”

O recorrente apresentou as respectivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:

«[...]

(i) O presente recurso encontra-se delimitado no seu objecto pela interpretação normativa dada pelo Tribunal a quo aos arts. 272.º, n.º 1, em conjugação com os arts. 119.º, alínea c) e 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P., ao art. 291, n.º 1, do Código Penal e ao art. 69.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, interpretações normativas essas que enfermam de inconstitucionalidade.

(ii) Todas as normas referidas no ponto anterior, na interpretação que nesta sede se questiona, foram chamadas a integrar a ratio decididendi da decisão recorrenda, razão pela qual todas as inconstitucionalidades suscitadas no Requerimento de Interposição de Recurso deverão ser conhecidas por este Tribunal.

(iii) É inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais vertidos nos arts. 2.º, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1, da C.R.P., a interpretação normativa segundo a qual a omissão de constituição e realização de interrogatório de Arguido no decurso da fase de inquérito gera a nulidade dependente de arguição (e, nesse sentido, sanável) prevista no art. 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P..

(iv) Tal interpretação não acautelaria as importantes finalidades que a constituição de Arguido e o interrogatório do mesmo cumprem no nosso modelo processual penal, maxime, em matéria de garantia de direitos de defesa.

(v) A omissão de realização de interrogatório de Arguido permite – como sucedeu, aliás, no caso vertente, que um processo chegue à fase de julgamento sem que ao Arguido seja dada qualquer possibilidade de deduzir a sua defesa.

(vi) Com tal omissão assiste-se à ausência processual do Arguido, num acto que a Lei expressamente qualifica como obrigatório.

(vii) A nulidade prevista no art. 120.º, n.º 2, alínea d) do C.P.P. tem o seu campo de aplicação nas situações em que, no decurso da fase de instrução, o Arguido requer o seu interrogatório, na medida em que, nessa altura, o Arguido já é sujeito activo no processo, revelando-se tal sanção insuficiente nas situações em que está em causa a omissão do acto pelo qual o Arguido é, pela primeira vez, chamado aos autos.

(viii) A obrigatoriedade da realização do interrogatório do Arguido na fase de inquérito visa atalhar, precisamente, às situações como aquela a que se assiste nos presentes autos e que é tributária de um modelo processual penal de matriz inquisitória: o Arguido apenas conheceu o teor da Acusação contra si deduzida na fase de julgamento, o que não é admissível num modelo processual de matriz acusatória, como é aquele que vigora no ordenamento jurídico português, por força do disposto no art. 32.º, n.º 5, da C.R.P..

(ix) No Acórdão n.º 1/2006, o STJ louva-se numa distinção artificial (direito de audiência vs. direito de presença), como forma de delimitar o âmbito de aplicação, por um lado, da nulidade cominada no art. 119.º, alínea c), do C.P.P. e, por outro, da nulidade cominada no art. 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código.

(x) Não faz sentido sancionar mais severamente a omissão de um acto para o qual um Arguido haja sido convocado e não haja comparecido do que a situação (que é, precisamente, a dos presentes autos), em que o Arguido nem está investido dessa qualidade.

(xi) A nulidade decorrente da preterição da formalidade prevista no art. 272.º, n.º 1, do C.P.P. tem de ser uma nulidade mais severa do que a mera preterição de actos legalmente obrigatórios, na medida em que o interrogatório do Arguido na fase de inquérito é o primeiro momento processual em que o Arguido é chamado a pronunciar-se sobre os factos que lhe são imputados.

(xii) Não faz, pois, sentido, que a sanção processual seja mais severa nas hipóteses em que o Arguido já se encontra investido nessa qualidade processual do que nas situações em que é chamado pela primeira vez ao processo.

(xiii) Só uma interpretação do art. 272.º, n.º 1, do C.P.P., no sentido de a omissão da realização de interrogatório de Arguido no decurso da fase de inquérito gerar a nulidade insanável prevista no art. 119.º, alínea e), do C.P.P. corresponde à concretização dos princípios constitucionais vertidos nos arts. 2.º, 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 1, da C.R.P., assumindo-se como uma interpretação conforme às garantias de um processo penal ancorado nos princípios do Estado de Direito democrático, da restrição mínima de direitos e das garantias de defesa.

(xiv) Sendo, consequentemente, inconstitucional, por violação de tais princípios, a interpretação normativa constante da decisão recorrenda nos termos da qual omissão da realização de interrogatório de Arguido no decurso da fase de inquérito gera a nulidade dependente de arguição (e, consequentemente, sanável) prevista no art. 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P.

(xv) A interpretação, patente na decisão recorrenda, segundo a qual a infracção criminal prevista no art. 291.º, n.º 1 não pressupõe, para a respectiva imputação ao agente, a verificação de um perigo concreto para bens jurídicos alheios é inconstitucional por violação dos princípios legais vertidos nos arts. 2.º, 18.º, n.º 2 e 29.º, n.º 1, todos da C.R.P..

(xvi) Neste...

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