Acórdão nº 581/00 de Tribunal Constitucional (Port, 20 de Dezembro de 2000

Magistrado ResponsávelCons. Helena Brito
Data da Resolução20 de Dezembro de 2000
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão nº 581/00

Proc. n.º 1083/98

  1. Secção

Relatora: Maria Helena Brito

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

  1. Na sequência de queixa apresentada pelo Procurador-Geral da República, o Ministério Público deduziu acusação contra D, Professor universitário, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 187º e 183º do Código Penal.

    No requerimento em que pediu a abertura de instrução, o Professor D invocou a ilegitimidade ou incompetência do Ministério Público para o exercício da acção penal, por estar em causa no processo, nos termos da queixa apresentada, "não só a pessoa do Procurador Geral da República, como também a própria Procuradoria-Geral e o Ministério Público", e suscitou a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, "que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir acusação, [por incompatibilidade] com os princípios do Estado de Direito, da legalidade e da imparcialidade consagrados nos artºs 2º e 219º da Constituição na sua versão actual, sempre que os ofendidos sejam aquele órgão do Estado, a Procuradoria-Geral da República ou o seu presidente".

    Na decisão instrutória, proferida em 25 de Março de 1998 (fls. 242 e seguintes), a Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa considerou improcedente a invocada ilegitimidade ou incompetência do Ministério Público e afastou a inconstitucionalidade suscitada, nestes termos:

    "O requerente não invoca [...] a interpretação que faz das normas e princípios para alcançar tal conclusão. E teria sido útil que o tivesse feito, porque o que o arguido pretende é, e salvo o devido respeito, que é muito, uma interpretação desconforme com o princípio da legalidade, com os princípios do Estado de Direito e com a própria Ordem Constitucional, o que com simplicidade se demonstra. A tese do arguido conduziria ad absurdo a situações, como a de quem ofendesse os tribunais em geral, não admitisse ser julgado por nenhum deles, a pretexto de inconstitucionalidade fundada em falta de isenção de todos os Tribunais, já que todos fariam parte da mesma estrutura, como a de que o Tribunal Constitucional não teria legitimidade ou isenção para apreciar os diplomas emanados da Assembleia da República, da qual o próprio Tribunal emana por eleição. Não basta, pois, que se aleguem meras suspeições abstractas e não concretizadas.

    O Estado de Direito consagra o princípio da legalidade. Consagra, igualmente, a separação de poderes. Na própria estrutura do Poder Judicial, está cometida aos Juízes a função jurisdicional, que, em sentido material, é a actividade do Estado que tem, por fim geral, declarar e aplicar nos casos concretos o Direito e a Justiça e tutelar os direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir as infracções da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados, através de órgãos imparciais e independentes, os Tribunais. Ao lado desta função, surge a do Ministério Público, a quem a Constituição nos termos do art. 219º [...] comete o exercício da acção penal.

    Também o disposto no art. 265º do C.P.P., ao prever que, se for objecto de notícia do crime, Magistrado Judicial ou do Ministério Público, é designado para a realização do inquérito Magistrado de categoria igual ou superior à do visado, não ofende o princípio da legalidade, e até visa tutelar a isenção e imparcialidade das investigações. Também, por esse motivo, se o visado for o Procurador-Geral da República, e por não haver Magistrado do Ministério Público que lhe seja superior, a competência do inquérito pertence a um Juiz. Ora, o art. 265º do C.P.P., visando a isenção e imparcialidade das investigações, só é aplicável quando os arguidos ou suspeitos sejam Magistrados, e, não enfermando de qualquer inconstitucionalidade, não é aplicável às situações em que a queixa seja apresentada por um Magistrado contra um cidadão comum.

    Ora, não pode o requerente pretender que, pelo facto de a queixa ser apresentada pelo Procurador-Geral da República, as regras do Estado de Direito, consagradas na Constituição da República, sejam subvertidas, e o Ministério Público não possa exercer a acção penal, passando a mesma a ser exercida pelos Tribunais, a quem competirá julgar a final, o que ainda seria mais inconstitucional, e apenas se justifica na situação do arguido ser Procurador-Geral da República, nos termos e fundamentos já indicados supra. Pior seria, pois, a solução pretendida pelo requerente. Acresce, finalmente, que a improcedência das nulidades invocadas pela defesa se funda, em última ratio, no princípio da legalidade, com referência ao art. 118º do C.P.P.. Não pretende, por certo, o requerente pôr em causa ou arguir a inconstitucionalidade do princípio da legalidade, à qual todos estamos sujeitos, incluindo o poder judicial, executivo e legislativo.

    Nestes termos, improcede também a pretendida recusa da aplicação das normas contidas nos arts. 263º e 264º do C.P.P., sendo inúteis outros considerandos, que apenas pecariam por redundância, até porque o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade, nos termos do acórdão 7/87, de 9 de Janeiro, entendeu a estrutura do actual Código de Processo Penal conforme aos preceitos constitucionais."

    Nos termos da mesma decisão o arguido foi pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 187º e 183º do Código Penal.

  2. D interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, fundamentando assim o seu pedido:

    "Com efeito, e por um lado, a decisão recorrida não atendeu ao pedido do arguido constante do requerimento para abertura de instrução de declaração de ilegitimidade no caso concreto do Ministério Público para exercer a acção penal e/ou de verificação do impedimento do respectivo magistrado acusador, hierarquicamente dependente do queixoso, visto fazê-lo em causa própria – portanto com parcialidade e falta de isenção – contrariamente ao disposto nos arts. 2º e 219º da Constituição que respectivamente consagram a defesa do Estado de Direito e impõem àquele órgão do Estado o respeito estricto pelo princípio da legalidade.

    Por outro lado, também não considerou nem admitiu que as normas contidas nos artºs 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que atribuem competência ao Ministério Público para dirigir e realizar o inquérito e deduzir a acusação, naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, o seu órgão superior, ou a pessoa do seu presidente, devessem ser desaplicadas ao abrigo do artº 204º da Constituição por incompatíveis com os princípios do Estado de Direito, da legalidade e da imparcialidade, consagrados nos mesmos artºs 2º e 219º da Lei Fundamental, pedido que igualmente consta do requerimento para abertura de instrução."

    O recurso não foi admitido, com fundamento em que, sendo recorrível a decisão tomada nos termos do artigo 308º, n.º 3, do Código de Processo Penal, não estava verificado o pressuposto, exigido pelo artigo 70º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de, em relação ao tipo de recurso utilizado, haverem sido esgotados os recursos ordinários (despacho de 20 de Maio de 1998, fls. 262).

  3. O recorrente reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, e este Tribunal deferiu a reclamação através do acórdão n.º 585/98, junto aos presentes autos (de fls. 413 a 421).

  4. Nas suas alegações de recurso apresentadas junto do Tribunal Constitucional, o recorrente formulou, entre outras, as seguintes conclusões:

    "[...]

    v) Os artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de cometerem ao Ministério Público a direcção e realização do inquérito e a dedução da acusação naqueles casos em que os ofendidos são o próprio Ministério Público, a Procuradoria-Geral da República ou o Procurador-Geral da República, não asseguram as exigidas cautelas em matéria de imparcialidade do Ministério Público;

    [...]

    tt) Os artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados nos termos referidos supra na alínea v) das presentes conclusões, impõem ao Ministério Público uma actuação que não oferece garantias objectivas de imparcialidade e que, como tal, não é susceptível de assegurar ao arguido, e à comunidade em geral, a confiança numa actuação do poder judicial isenta e objectiva, como é exigível numa sociedade democrática;

    uu) Por isso mesmo, e nessa exacta medida, tais preceitos, na citada interpretação, violam o princípio da imparcialidade, na sua vertente objectiva;

    vv) Consequentemente, e uma vez que o princípio da imparcialidade na sua referida vertente é um subprincípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da CRP, aqueles preceitos são materialmente inconstitucionais por violação deste último princípio;

    xx) Os mesmos preceitos violam ainda directa e imediatamente o princípio do Estado de direito democrático, porquanto criam condições objectivas para a prepotência, o arbítrio e a injustiça;

    [...]

    bbb) Esta objectiva falta de condições de isenção e objectividade não garante que se investigue «à charge et à décharge» e, por conseguinte, põe em causa a justiça e a lealdade do processo violando, desse modo, o princípio das garantias de defesa próprias de um processo justo, consagrado para o processo penal no artigo 32º, n.º 1, da Constituição;

    ccc) A obrigatoriedade de realizar e dirigir o inquérito com a mesma falta de condições objectivas de isenção e de imparcialidade decorrente dos artigos 263º, n.º 1, e 264º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretados nos termos em análise, atenta contra a autonomia do Ministério Público consagrada no artigo...

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