Acórdão nº 412/03 de Tribunal Constitucional (Port, 23 de Setembro de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução23 de Setembro de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

Acórdão n.º 412/2003 Processo n.º 816/02

  1. Secção

Relator: Cons. Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,

  1. Relatório

    O Ministério Público deduziu, em 29 de Novembro de 1996, acusação contra A., imputando-lhe a autoria de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos termos dos artigos 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e 313.º e 314.º, alínea c), do Código Penal de 1982, por, em 18 de Maio de 1992, ter preenchido, assinado e entregue a B., a qual por sua vez o endossou a C., o cheque n.º ---------------, sobre o Banco ----------------, no valor de 4 000 000$00, que, apresentado a pagamento, foi devolvido por falta de provisão.

    Tendo-se frustrado as tentativas de notificação pessoal ao arguido quer da acusação deduzida, quer do despacho judicial que a recebeu, procedeu?se a notificação por éditos de uma e de outro, mas, não se tendo o arguido apresentado, foi o mesmo declarado contumaz por despacho de 28 de Janeiro de 1998.

    Em 12 de Junho de 2002, o arguido apresentou requerimento propugnando, além do mais, que se julgasse extinto o procedimento criminal por prescrição, o que foi indeferido por despacho de 1 de Julho de 2002 do juiz do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, mas, interposto recurso deste despacho, veio o mesmo a ser reparado pelo seu autor, por despacho de 29 de Outubro de 2002, do seguinte teor:

    ?O Tribunal repara a decisão recorrida nos seguintes termos:

    Os factos tiveram lugar em 18 de Maio de 1992.

    O arguido foi declarado contumaz a 28 de Janeiro de 1998 (fls. 84).

    O arguido está acusado da prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e artigos 313.º e 314.º, alínea c), do Código Penal.

    O prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos em face da acusação e não se verificaram quaisquer factos que interrompessem ou suspendessem aquele prazo de prescrição, nos termos dos artigos 119.º e 120.º do Código Penal de 1982.

    Com efeito, atenta a data dos factos, são aplicáveis os artigos 119.º e 120.º do Código Penal de 1982. As causas de interrupção e de suspensão da prescrição do procedimento criminal previstas naqueles artigos reportavam-se ao Código de Processo Penal de 1929 e não podem ser aplicadas nem integradas analogicamente pelo Código de Processo Penal de 1987, como tem decidido o Tribunal Constitucional (vide Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 205/99, de 7 de Abril de 1999, e n.º 122/00, de 23 de Fevereiro de 2000, in, respectivamente, Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999 e de 6 de Junho de 2000).

    Decorre, pois, desta jurisprudência constitucional a manifesta inconstitucionalidade, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, da equiparação, já tentada nos tribunais, da causa de interrupção prevista no artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 com a declaração de contumácia (vide Colectânea de Jurisprudência, volume I, pág. 149), por a omissão da contumácia entre as causas de interrupção da prescrição constituir uma «lacuna insusceptível de ser preenchida» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Editorial Notícias, 1993, pág. 710). Também não pode proceder a consideração da declaração de contumácia como uma causa de suspensão da prescrição, nos termos do assento n.º 10/2000, de 19 de Outubro de 2000, que consubstancia uma aplicação analógica e retroactiva a factos anteriores a 1 de Outubro de 1995 de uma causa de suspensão inexistente no Código Penal de 1982 (a declaração de contumácia).

    O argumento, usado na fundamentação do assento, de que:

    (...) a expressão usada ?casos especialmente previstos na lei? não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos iguais tem de haver soluções idênticas

    ,

    consubstancia uma clara interpretação analógica, especialmente visível na última frase citada!

    Ora, as causas de interrupção e de suspensão do procedimento criminal devem ser interpretadas restritivamente e constituem um catálogo apertado que se refere apenas aos institutos processuais vigentes à data da criação da lei que regulamenta a lei da prescrição, como manda a boa doutrina (cf. Adolf Schõnke e Horst Shrõder, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1991, pág. 945, e Eduard Dreher e Herbert Trõndie, Strafgesetzbuch Kommentar, München, editora Beck, 1995, pág. 606), seguida uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça alemão, o Bundesgerichtshof (BGH-Entscheidungen, vol. 4, pág. 135, vol. 18, pág. 278, vol. 26, pág. 83, e vol. 28, pág. 281). Esta doutrina e esta jurisprudência são particularmente significativas, porque o Código Penal português de 1982 reproduz praticamente o sistema alemão previsto nos §§ 78, 78a, 78b, 78c, 79, 79a e 79b do Código Penal alemão, sendo ainda mais restrito do que este direito, por prever menos causas de suspensão e de interrupção. O intérprete português não pode, portanto, ignorar o elemento interpretativo sistemático e teleológico que inspirou o legislador português em 1982, sob pena de se estar a substituir ao legislador.

    Coloca-se ainda o problema de saber qual das duas questões de inconstitucionalidade deve este Tribunal conhecer primeiro, o que é decisivo para efeitos da interposição do recurso desta decisão.

    O conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 120.º do Código Penal de 1982 é prévio ao conhecimento da inconstitucionalidade do artigo 119.º do Código Penal de 1982, uma vez que a interrupção é mais gravosa para o arguido do que a suspensão da prescrição. Deve, pois, este Tribunal conhecer primeiro da questão da inconstitucionalidade do regime das causas de interrupção da prescrição e depois da inconstitucionalidade do regime das causas de suspensão da prescrição, ficando deste modo salvaguardada a prioridade lógica do recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional da decisão de inconstitucionalidade da interpretação do artigo 120.º do Código Penal de 1982, que não se encontra decidida por qualquer acórdão de fixação de jurisprudência.

    Aliás, mesmo em relação à questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 119.º do Código Penal de 1982, nos termos em que foi decidida pelo assento n.º 10/2000, a prioridade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão que negue a aplicação da interpretação fixada no assento com base na sua inconstitucionalidade poderia ter como consequência a manutenção pelo Supremo Tribunal de Justiça da sua posição, revogando a decisão recorrida e não podendo o Tribunal Constitucional conhecer da própria inconstitucionalidade suscitada em relação à interpretação firmada no assento. Este movimento circular, em que o Supremo Tribunal de Justiça é o último juiz da inconstitucionalidade da interpretação fixada nos assentos que profere, conduziria em linha recta a uma interpretação das disposições do n.º 5 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, na versão do artigo 1.º da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, em violação do disposto no artigo 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República e representaria uma fraude ao sistema constitucional de garantia da Constituição.

    Pelo exposto:

  2. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa aí prevista, e

  3. não aplico, por os julgar inconstitucionais, os artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º l, do Código Penal de 1982, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no assento n.º 10/2000,

  4. e, em consequência, declaro prescrito o procedimento criminal e determino o oportuno arquivamento dos autos.?

    É deste despacho que, pelo Ministério Público, vem interposto o presente recurso para este Tribunal Constitucional, fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.° 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), ?reportado à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade (violação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa), das normas constantes dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, em conjugação, respectivamente, com as dos artigos 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982, na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada à causa de interrupção da prescrição aí prevista; e 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, na interpretação fixada pelo «assento» n.º 10/2000 (enquanto causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal)?.

    O recorrente apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:

    ?1 ? Por força do preceituado no n.° 5 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, tem precedência sobre o recurso de fiscalização concreta, interposto para o Tribunal Constitucional, o «recurso ordinário obrigatório», previsto no artigo 446.°, n.° l, do Código de Processo Penal, a interpor pelo Ministério Público (nos termos do artigo 80.°, n.° 4, da Lei n.° 28/82) e a dirimir previamente na ordem dos tribunais judiciais, no que se refere à recusa de aplicação da interpretação normativa realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça no «assento» n.° 10/2000.

    2 ? É inconstitucional, por violação do artigo 29.°, n.°s 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 120.°, n.° l, alínea d), do Código Penal de 1982 ? conjugado com as normas que regulam a declaração de contumácia e respectivos efeitos ? enquanto faz equiparar, em termos substancialmente inovatórios, para efeitos da interrupção da prescrição do procedimento...

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