Acórdão nº 256/03 de Tribunal Constitucional (Port, 21 de Maio de 2003

Magistrado ResponsávelCons. Helena Brito
Data da Resolução21 de Maio de 2003
EmissorTribunal Constitucional (Port

Proc. n.º 647/02 Acórdão nº 256/03 1ª Secção

Relatora: Maria Helena Brito

Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

  1. Por sentença de 24 de Maio de 2001 (fls. 317 e seguintes), o juiz do Tribunal Judicial de Guimarães condenou A. e outra pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro. Relativamente ao arguido A., foi a respectiva pena de dois anos de prisão suspensa pelo período de três anos, sob a condição de pagamento à Segurança Social, no prazo máximo de dois anos, da quantia de 75.626.045$00 (correspondente ao montante em dívida à Segurança Social), acrescida de juros de mora.

  2. Desta sentença recorreram A. e outra para o Tribunal da Relação do Porto (fls. 342), tendo na motivação respectiva (fls. 342 e seguintes) apresentado as seguintes conclusões:

    “Primeira: Nos casos em que o procedimento criminal não depende de queixa ou acusação particular, quem tem legitimidade para promover o processo penal é o Ministério Público – artigo 48º do Código de Processo Penal.

    Segunda: Nos presentes autos, todas as diligências levadas a cabo no âmbito do «inquérito» foram realizadas pelo Centro Regional de Segurança Social, o qual, para além de não ser autoridade judiciária, não actuar sob a directa orientação do Ministério Público e também além de não ter em relação a este qualquer dependência funcional, é também o próprio OFENDIDO e, no caso, também ASSISTENTE nos autos!

    Terceira: Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº l e 51º-A, todos do RJIFNA, a investigação preparatória dos crimes fiscais compete exclusivamente à Administração Fiscal e não ao Ministério Público [...].

    Quarta: Ora, o atrás citado artigo 48º do Código de Processo Penal – que atribui ao Ministério Público a legitimidade para promover o processo penal – é uma norma de valor constitucional, na medida em que constitui a emanação do postulado fundamental de que o Ministério Público é o órgão do Estado e da Justiça – art. 219º da Constituição da República Portuguesa (anterior art. 221º) – a quem especificamente compete exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade democrática, ou seja, actuando num quadro constitucional e funcional a que são inerentes os princípios da legalidade, objectividade e imparcialidade [...].

    Quinta: Assim, os citados artigos 43º, nºs 1 e 2, 44º, nº 1 e 51º-A, todos do RJIFNA, na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais – afastando o Ministério Público em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal – são materialmente inconstitucionais por violação expressa dos artigos 32º, nºs 4 e 5, 111º, 219º, todos da Constituição da República Portuguesa (anteriores arts. 32º, nºs 4 e 5, 114º e 221º), inconstitucionalidade essa que aqui se invoca.

    [...]

    Quadragésima sétima: Ao condenar o recorrente A. «...na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 3 (três) anos, sob a condição de pagamento à Segurança Social, no prazo máximo de 2 (dois) anos, da quantia de 75.626.045$0 (setenta e cinco milhões seiscentos e vinte e seis mil e quarenta e cinco escudos), acrescida de juros de mora..», a douta sentença recorrida subordinou a suspensão da pena de prisão ao pagamento de um montante que manifestamente este não será capaz de pagar no prazo que lhe foi concedido,

    Quadragésima oitava: pelo que, revelando-se a condição da suspensão manifestamente inadequada, desproporcionada e virtualmente impossível para o recorrente, na prática, a douta sentença recorrida condenou o recorrente a uma pena de prisão efectiva.

    Quadragésima nona: Em face do exposto, sempre seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, constantes dos artigos 13.º e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 11º, nº 7, do RJIFNA, ou a interpretação que dela se faça, no sentido de considerar admissível a subordinação da suspensão da pena de prisão a que o recorrente A. foi condenado ao cumprimento de um dever manifestamente impossível para ele e fora do condicionalismo previsto no artigo 51º, nº 1, al. a) e nº 2 do Código Penal, normas estas que a douta sentença recorrida violou.

    [...].”

    Na sua resposta à motivação do recurso, sustentou o Ministério Público que a sentença devia ser mantida, com os seguintes fundamentos (fls. 465 e seguintes):

    “[...]

    O processo penal fiscal, pela especificidade própria e natureza técnica dos conhecimentos exigíveis a uma eficaz investigação e a uma correcta apreciação da matéria de facto relevante, reclama uma articulação entre o Know how da administração fiscal e a formação e sensibilidade jurídica de quem tem o domínio do inquérito.

    Acresce que esse domínio do inquérito pelo Ministério Público não é posto em causa pela existência de um processo de averiguações, na medida em que este, embora encetado pela administração fiscal, está subordinado ao princípio da oficialidade e da legalidade, além de que as competências concedidas ao agente da administração fiscal são exercidas sob o controlo, a potestas e na dependência funcional do Ministério Público, o que, aliás, decorria da interpretação conjugada dos artigos 55°, 56°, 248°, 263°, 270°, todos do Código de Processo Penal, 203° nº 2 do Código Processo Tributário, e 43° nº 1 e 2 do RJIFNA (vigentes à data dos factos e da decisão condenatória, antes das recentes alterações legislativas, que em nada contendem com a actualidade deste raciocínio).

    [...]

    [...] se o recorrente A. deixar de cumprir não culposamente a condição imposta como condição de suspensão da execução da pena de prisão aplicada, esta não será, por esse facto e sem mais, revogada.

    [...].”

    Também o Instituto da Solidariedade e Segurança Social respondeu, pugnando pelo improvimento do recurso (fls. 471 e seguintes).

    O representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação do Porto emitiu parecer no sentido de que, devendo embora ser negado provimento ao recurso, a punição fosse alterada (fls. 481 e seguintes). Sustentou então o seguinte:

    “[...]

    4.1.1. Quer-me parecer, salvo o devido respeito, que a conclusão de que os arts. 43º, nº 1 e 2, 44º, nº 1 e 52º-A do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por estabelecerem «uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais – afastando o Mº Pº, em clara violação do disposto no art. 48° do CPP», assenta numa leitura incompleta desses preceitos. De facto, o Mº Pº não foi afastado por qualquer daqueles preceitos da «investigação preparatória dos crimes fiscais», como claramente se vê do nº 2 do art. 43°, que não o proíbe, em qualquer altura do procedimento, de avocar o inquérito e realizar ele próprio, ou o órgão de polícia criminal que designar, as diligências pertinentes. A presunção de delegação da prática de actos do inquérito por parte do Mº Pº nos órgãos de polícia criminal – e os dirigentes e funcionários dos CRSS têm essa categoria para esses efeitos, conforme os arts. 51º-A do RJIFNA e 1º-c) do CPP – tem suporte, de resto, no art. 270º deste último Código e não significa, obviamente, como querem os recorrentes, que, tendo conhecimento de factos susceptíveis de integrar crime, não possa iniciar ele próprio o inquérito, cessando de imediato qualquer actividade de investigação eventualmente já desencadeada pela Segurança Social, que tenha de delegar a sua realização nessas entidades ou que os órgãos da Segurança Social, enquanto órgão de polícia criminal, fujam à orientação do Mº Pº ou saiam da sua dependência funcional. Com a presunção legal de deferimento da competência para a prática de actos do inquérito – e, note-se, essa delegação não pode contrariar o n° 2 do art. 270° do CPP – apenas se pretendeu evitar que a delegação tivesse de ser feita caso a caso, por despacho. Por isso é que, se, no caso concreto, todas as diligências de instrução do inquérito foram realizadas pelos funcionários da Segurança Social, foi porque o Mº Pº, no pleno exercício dos seus poderes de direcção, assim entendeu conveniente, depois de lhe ter sido comunicado o início do mesmo. (cfr. fls. 2). De facto, a doutrina do art. 263°, nº 2 do CPP, segundo a qual os órgãos de polícia criminal actuam sob a directa orientação do Mº Pº e na sua dependência funcional – no que toca à realização de actos do inquérito, já se vê – não foi afastada pelo RJIFNA e por isso é que a interpretação de Nuno Sá Gomes, invocada pelos recorrentes, de que a «investigação preparatória dos crimes fiscais compete exclusivamente à Administração Fiscal e não ao Ministério Público» foi repudiada, por exemplo, por Alfredo José de Sousa (cfr. «Infracções Fiscais ...», 3ª edição, pág. 208) por ser contrária ao regime geral do CPP e ao princípio constitucional da titularidade exclusiva da acção penal e da unidade do Ministério Público.

    Aliás, o art. 3° alíneas h) e n) do Estatuto do Ministério Público confere-lhe competência para dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades, e para fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal.

    Improcede, pois, a alegada inconstitucionalidade, tanto mais que não descortino a pertinência da invocação, como normas constitucionais violadas, dos arts. 32°, nºs 4 e 5 a primeira porque se prende com a competência para a instrução; a segunda porque, postulando a estrutura acusatória do processo criminal e o princípio do contraditório, não vejo em que tais princípios possam ser beliscados pela delegação de competências, expressa ou presumida, do Mº Pº nos órgãos de polícia criminal, 111º porque, independentemente de saber se, na sua previsão, cabe o Mº Pº, desinserido do órgão de...

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