Acórdão nº 426/05 de Tribunal Constitucional (Port, 25 de Agosto de 2005

Magistrado ResponsávelCons. Mário Torres
Data da Resolução25 de Agosto de 2005
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 426/2005

Processo n.º 487/05

  1. Secção

Relator: Conselheiro Mário Torres

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional.

1. Relatório

1.1. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 23 de Março de 2004 (fls. 2568 a 2621), negando provimento aos recursos por eles interpostos, manteve as condenações, aplicadas em 1.ª instância, dos arguidos A., B. e C., como co-autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punível pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de 8, 9 e 7 anos de prisão, respectivamente, e, quanto aos dois primeiros, como autores de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punível pelo artigo 6.º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, nas penas de 9 meses de prisão (em cúmulo jurídico com a anterior, na pena única de 8 anos e 4 meses de prisão) e de 100 dias de multa à taxa diária de € 4, também respectivamente.

Esse acórdão foi anulado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 17 de Junho de 2004 (fls. 2749 a 2778), para ampliação da matéria de facto restrita ao ponto assim enunciado:

“(...) a fundamentação de facto do acórdão recorrido, ao remeter em larga medida, por mera remissão genérica, para os «documentos juntos aos autos», mormente as transcrições das escutas, acabou por omitir um dado essencial, a saber: tirando a única transcrição em que se diz que o juiz ouviu [previamente] a gravação, as demais ordens de transcrição dadas foram ou não precedidas da imprescindível escolha por aquele magistrado? E se não, foi, ao menos, tal selecção, objecto das transcrições, deferida [pelo juiz], ainda que por coadjuvação, solicitada ao órgão de polícia criminal, tal como o previsto no n.º 4 do artigo 188.º citado?

Da resposta a estas perguntas vai uma distância grande que pode oscilar – consoante as teses jurisprudenciais antagónicas em presença – entre a validade e a nulidade ou, mesmo, inexistência, deste meio de prova em que se baseia a deliberação recorrida.

Mas que não tendo sido dada na fundamentação do acórdão recorrido, coloca este sob a alçada dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, alínea a), do Código de Processo Penal

1.2. Na sequência desta anulação e após realização de audiência de julgamento (cfr. acta de fls. 2815), o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu o acórdão de 18 de Outubro de 2004, no qual, apesar de julgar improcedentes todos os recursos, reformulou, por força da entrada em vigor da Lei n.º 11/2004, de 27 de Maio (cujo artigo 54.º alterou, em sentido mais favorável para os arguidos, a redacção do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), as penas aplicadas aos arguidos A., B. e C., como co-autores materiais do aludido crime de tráfico de estupefacientes agravado, para 7 anos e 6 meses, 8 anos e 6 meses e 6 anos e 7 meses de prisão, respectivamente, mantendo, quanto aos dois primeiros arguidos, as condenações, como autores do referido crime de detenção ilegal de arma de defesa, nas penas de 9 meses de prisão (em cúmulo jurídico com a anterior pena, 7 anos e 10 meses de prisão) e de 100 dias de multa à taxa diária de € 4, também respectivamente. Nesse acórdão, a propósito da validade das escutas, o Tribunal da Relação de Guimarães consignou o seguinte, após transcrever os artigos 187.º e 188.º do Código de Processo Penal (CPP):

“Não temos como necessário fazer-se uma análise exaustiva destes preceitos, bastando-nos algumas notas genéricas e as pertinentes para o fim em causa, ou seja, demonstrar-se a bondade dos procedimentos policiais e judiciais do caso em apreço ou, pelo menos, que os actos respectivos não estão afectados de qualquer nulidade insanável.

Enquanto o artigo 187.° consagra a admissibilidade da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas, para valerem como meio de prova, desde que ordenadas ou autorizadas por despacho judicial e relativamente aos crimes taxativamente enunciados, o artigo 188.° estabelece as formalidades a que estão sujeitos os actos de intercepção e de gravação.

Estes normativos estabelecem um regime de autorização e de controlo judicial e o «sistema de catálogo», em consonância com o disposto no artigo 34.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, bem como com o disposto no n.º 4, que consagra que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação social salvo os casos previstos na lei em matéria de processo penal.

Do referido preceito constitucional se retira que só em matéria de processo penal é admissível a limitação do direito fundamental relativo ao sigilo da correspondência e telecomunicações pelas autoridades judiciais, corporizando os artigos 187.° a 190.° do CPP precisamente a excepção indicada no segmento final do comando constitucional.

Como sublinha Costa Andrade (Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, pág. 286), o teor particularmente drástico da ameaça representada pela escuta telefónica explica que a lei tenha procurado rodear a sua utilização das maiores cautelas. Daí que a sua admissibilidade esteja dependente do conjunto de exigentes pressupostos materiais e formais previstos nos artigos 187.° e seguintes da lei processual portuguesa.

O legislador procurou, assim, inscrever o regime das escutas telefónicas sobre a exigente ponderação de bens: por um lado, os sacrifícios ou perigos que a escuta telefónica traz consigo e, por outro lado, os interesses mais relevantes da perseguição penal.

Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha de provas através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas no texto constitucional.

Só que, apesar da singeleza dos textos legais e da clara definição de princípios, a nossa jurisprudência tem sido em grande parte determinada por interpretações que apenas satisfazem interesses de recurso e confundida sobre a leitura integral daqueles princípios.

Nos termos do artigo 189.°, todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.° e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade.

As nulidades insanáveis são as que, taxativamente, são definidas nas alíneas a) a f) do artigo 119.º, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais.

Ora, ao estabelecer o regime que estabeleceu no artigo 189.°, isto é, sem qualquer adjectivação, o legislador deixou a possibilidade de, nesta matéria, as nulidades serem enquadradas como insanáveis se houver violação das regras materiais de recolha de prova e as outras, as que derivam de meros aspectos formais, como dependentes de arguição ou meras irregularidades. Se o legislador – que se deu ao trabalho de, em artigo próprio, esclarecer que a violação daqueles requisitos e condições eram estabelecidos sob pena de nulidade – quisesse que toda e qualquer violação fosse considerada nulidade insanável, tinha-as qualificado como tal.

O acto solene que põe em causa os direitos constitucionais tão delicados como aqueles é o da autorização, compreendendo-se, pois, que a sua irregularidade afecte irremediavelmente a sua validade.

Os demais actos, de audição, selecção e transcrição já nada têm a ver com os direitos dos visados e apenas se destinam a garantir confidencialidade, através de mecanismos apertados, nomeadamente a não exposição a outras pessoas que não sejam o próprio juiz e os agentes do órgão de polícia criminal que efectue a escuta.

A operacionalidade desses mecanismos não vem estritamente definida e a prática aconselha a que, as mais das vezes, seja o órgão de polícia criminal quem previamente elabora um resumo das escutas, submetendo-o ao juiz, sem que com isso se viole qualquer regra.

Por um lado, alguém daquele órgão tem acesso imediato ao conteúdo das conversas e, por outro, esse resumo (que também se justifica por evidentes e pesadas razões de economia processual) é controlado por decisão judicial que chancela a escolha que foi feita de acordo com os critérios de quem investiga, em especial os que resultam da conjugação de todos os elementos que interessam e que só o «instinto policial» deve orientar.

Este procedimento corrente, além de, como já se frisou, não violar nenhum direito dos visados, está legalmente autorizado no n.º 2 do artigo 188.°, sendo preciso compreender-se a elevada complexidade dos factos a investigar e mal se aceitando que fosse um juiz, sozinho, a ouvir o conteúdo das escutas e a seleccionar o que interessava ou não para o caso. E, ao mandar proceder à transcrição daquilo que lhe foi sugerido como relevante e à destruição do que é impertinente, o juiz está, afinal, a aceitar a coadjuvação do órgão de polícia criminal que ele próprio poderia expressamente solicitar.

No caso dos autos, os mapas de fls. 1 e 2 do Apenso 2, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, condensam com perfeição todos os actos e prazos que garantem, do ponto de vista substancial, a validade plena das escutas em causa.

Por seu lado, os autos que documentam os prévios resumos elaborados pela Polícia Judiciária (cf. a coluna «Auto Fim» do mapa de fls. 2) e os despachos judiciais que sobre eles recaíram não mostram qualquer irregularidade, estando plenamente garantido o escopo a atingir, com a particularidade de todos os suportes em papel e informáticos serem levados em mão ao juiz por inspectores da Polícia Judiciária, conforme despachos expressos do seu director.

Nesta conformidade, embora se conclua dos teores respectivos que, no caso das ordens de transcrição contidas nos despachos de fls. 146 v.º, 178 v.º, 200 v.º, 213 e 404, houve prévia audição das escutas pelos JIC's e que o mesmo não se pode concluir no que concerne aos despachos de fls. 246, 288 e 589, ponto...

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