Acórdão nº 480/06 de Tribunal Constitucional (Port, 07 de Agosto de 2006

Magistrado ResponsávelCons. Maria João Antunes
Data da Resolução07 de Agosto de 2006
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO N.º 480/2006

Processo nº 720/06

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria João Antunes

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional

  1. Relatório

    1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é reclamante A. e reclamado o Ministério Público, foi deduzida reclamação, ao abrigo do disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho proferido naquele Tribunal, em 13 de Julho de 2006, que decidiu não admitir, por intempestividade, recurso interposto para o Tribunal Constitucional.

    2. Em 16 de Maio de 2006, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu no sentido da execução de dois mandados de detenção europeus de A., emitidos na Alemanha, com suspensão da entrega da pessoa procurada, para o efeito de ser sujeita a procedimento criminal pendente em Portugal.

      Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, foi negado provimento ao mesmo, por acórdão de 22 de Junho de 2006, com os seguintes fundamentos:

      NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO POR FALTA DE PRONÚNCIA?

      O recorrente vem arguir a nulidade do acórdão recorrido, nos termos dos art.°s 379.°, n.° 1, al. c) e 425.°, n.° 4, do CPP, por não se te pronunciado sobre uma questão que tinha sido suscitada nos autos e que é fundamental para a decisão da causa, a violação do princípio “ne bis in idem”.

      Contudo, toda a fundamentação do acórdão recorrido, que nem sequer é escassa, é sobre essa problemática, como se pode ver por esta transcrição:

      As citadas alíneas b, e h, do art. 12, prevêem a recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu se “estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu” (al. b) e se “o mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que ... segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional...” (al. h).

      No caso, como resulta de fls. 243 e segs. e de fls. 312, está pendente em Portugal procedimento contra o opoente por crime de trafico de estupefacientes agravado pelos factos descritos a fls.243

      Posteriormente ao acórdão de fls.265, veio a apurar-se que, em relação a essa acusação não foi requerida instrução, encontrando-se o processo em fase de julgamento (processo C. C. nº148/05. 5JELSB da 3ª Secção, da 5ª Vara Criminal de Lisboa).

      Como resulta da certidão junta aos autos, nesse processo é imputado ao opoente o facto de, em 24Abr.05, em Lisboa com outro, deter 15202,8gr. de cocaína destinada à cedência a terceiros, dizendo-se na acusação ainda, que o mesmo vinha sendo investigado na Alemanha por, concertadamente com outros, vir-se dedicando desde início de 2004, à introdução de cocaína e outros produtos estupefacientes na Europa.

      Importa, assim, saber se o procedimento criminal que corre em Portugal é pelo facto que motiva a emissão dos mencionados mandados de detenção europeu

      A possibilidade de recusa da execução do mandato por esse fundamento ao contrário do que parece pretender alegar o opoente não se destina a evitar a violação do princípio ne bis in idem, pois este pressupõe a existência de um decisão transitada em julgada, hipótese em que ocorre fundamento de recusa obrigatória (art. 11, al.b).

      A pendência de procedimento criminal pelo mesmo facto nos dois estados, apenas cria a potencialidade de vir a ocorrer violação de tal princípio e reconduz-se antes, à figura da litispendência que se traduz na repetição de uma causa estando a anterior pendente

      O Código de Processo Penal não regula a figura da litispendência o que justifica a aplicação subsidiária da disciplina do Código de Processo Civil, sendo os seus limites os mesmos do caso julgado.

      Olhando aos factos descritos em cada um dos mandados de detenção em causa, em nenhum deles se descreve os factos ocorridos em Lisboa em 24Abr.05 (detenção pelo opoente de cocaína com o peso bruto de 15202,8gr.), tendo os últimos actos descritos em tais mandados ocorrido em Jan.05, não sendo tais factos, também, descritos na acusação formulada no processo n°148/05. 5JELSB.

      Defende o opoente, porém, que todos os factos, os do processo pendente em Portugal e os dos mandados recebidos da Alemanha, integram a mesma actividade, de trafico de estupefacientes o que constitui um único crime, objecto do julgamento em Portugal, dessa forma estando preenchida a citada alínea b, do art. 12.

      De facto, como resulta da própria letra do art.21, do Dec. Lei n°15/93, de 22-1, o crime de trafico é um crime de mera actividade, punindo quem, sem autorização, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar ou ilicitamente detiver estupefaciente.

      Isso não exclui, porém, a possibilidade do mesmo agente poder ser condenado por mais de um crime dessa natureza, tudo dependendo das circunstâncias concretas de cada caso.

      Na verdade, tudo depende da existência de unidade de desígnio e intenção criminosa.

      Como refere o Prof Eduardo Correia (…) “... verificado que entre as actividades do agente existe uma conexão no tempo tal que, de harmonia com a experiência comum e as leis psicológicas conhecidas, se deva presumir tê-las executado a todas sem renovar o respectivo processo de motivação, estamos em presença de uma unidade jurídica, de uma só infracção”.

      Com base nos elementos disponíveis nos autos não é possível concluir pela unidade ou pluralidade de resoluções criminosas.

      Contudo, mesmo na hipótese de se tratar de um único crime de trafico de estupefacientes, com actos parcelares praticados na Alemanha e em Portugal, entendemos que a pendência do referido processo em Portugal com o objecto que é definido pela acusação junta aos autos não justifica a recusa de entrega do opoente.

      Com efeito, recusar a entrega significaria deixar impune grande parte da actividade de tráfico desenvolvida pelo opoente, o que não pode deixar de repugnar. Embora toda a actividade possa constituir um único crime, em termos de ilicitude e culpa, não é indiferente o conhecimento e ponderação de certos factos parcelares que integrando a actividade não constam do processo n°148/05.

      Ao contrário do que defende o opoente, os actos parcelares integradores da actividade de tráfico por ele desenvolvida e que são descritos nos MDE em causa, não lhe são imputados na acusação formulada no C.C. n°148/05. Nesta acusação, o Ministério Público, limita-se a alegar que o arguido “… já se vinha dedicando, pelo menos desde inícios de 2004, à introdução de cocaína e outros produtos na Europa... factos que estavam a ser investigados pelas autoridades alemães que o apontam como responsáveis pelo transporte ... de pelo menos cerca de 100Kgs. de cocaína…” , sendo tal alegação feita, apenas, como forma de enquadrar os actos praticados em Lisboa, em particular o crime de falsificação que lhe é imputado e relativo à sua identificação.

      De texto da acusação, é evidente que o Ministério Público não acusa o arguido de actos ocorridos na Alemanha, se o fizesse não se louvaria em investigações feitas pelas autoridades alemães, mas em investigações levadas a cabo no inquérito de Lisboa, pois para deduzir acusação teriam de constar dele os indícios suficientes da verificação do crime (art.283, n°1, do CPP) e teria a acusação desses factos de ser feita com a precisão exigida pela alínea b, do n°3, do art.283, do CPP, quanto às circunstâncias de tempo e lugar de ocorrência dos factos e não da forma genérica como são referidos os actos da Alemanha. Por outro lado, na parte da acusação em que é feita referência aos elementos subjectivos dos crimes imputados e à motivação da conduta (n°s24 a 26 e 37 da acusação) nada é dito quanto aos actos, alegadamente, ocorridos na Alemanha.

      Assim, da actividade de tráfico alegadamente desenvolvida pelo opoente só é imputado no processo de Lisboa o acto parcelar de 24Abr. 05.

      Aceitar que o simples facto do opoente responder por aquele acto trafico em Portugal impede que o mesmo seja submetido a julgamento na Alemanha, por outros actos parcelares, eventualmente integradores da mesma actividade, mas diferentes dos apreciados em Portugal, seria admitir, como referimos, que parte da actividade ilícita ficasse impune, já que, nunca poderia no processo pendente em Portugal ser proferida uma decisão que tivesse em conta o real grau da ilicitude e da culpa, o que pressupõe apreciação, também, dos actos concretos descritos nos dois mandados de detenção em causa que, como vimos, não estão no âmbito do objecto do processo de Lisboa.

      Numa Europa, onde as leis são cada vez mais iguais umas às outras e os Estados, cada vez menos países, integrados numa União com objectivo de tornar-se um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, constituindo o regime jurídico do mandado de detenção europeu um regime simplificado de entrega de pessoas e um instrumento de combate à criminalidade internacional, é óbvio que este regime jurídico não pode servir para abrir a porta à impunidade, ainda que parcial, de certos comportamentos que integram actividades ilícitas, cujo combate constitui prioridade dos Estados e das Instituições da União.

      Não sendo possível a apreciação global, no processo pendente em Portugal, de todos os actos parcelares que integram a actividade ilícita em causa, porque esses factos não constam da acusação e não houve delegação do procedimento penal pelos actos ocorridos na Alemanha nas autoridades portuguesas (arts. 79 e segs. da Lei n°144/99, de 31-8), só um segundo julgamento, neste caso na Alemanha, apreciando globalmente os factos e respeitando o caso julgado formado entretanto em relação à decisão portuguesa, permitirá uma adequada e suficiente apreciação penal da conduta global. (…)

      Esta solução não ofende o caso julgado (…) , uma vez que os factos do segundo processo não coincidem com os do...

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