Acórdão nº 450/07 de Tribunal Constitucional (Port, 18 de Setembro de 2007

Magistrado ResponsávelCons. Maria Lúcia Amaral
Data da Resolução18 de Setembro de 2007
EmissorTribunal Constitucional (Port

ACÓRDÃO Nº 450/2007

Processo nº 452/2007

  1. Secção

Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral

Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional

I

Relatório

  1. No Tribunal da Comarca de Lisboa, o Ministério Público acusou, entre outros, A. e B., o primeiro pela prática, em co-autoria material e em concurso real: de um crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela anexa I-A e I-B e 30.º do Código Penal; de um crime de receptação na sua forma continuada, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 e 30.º do Código Penal; de um crime de posse de arma não manifestada e sem licença de uso e porte de arma, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho. A segunda pela prática, em co-autoria material e em concurso real: de um crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e continuada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela anexa I-A e I-B e 30.º do Código Penal; de um crime de receptação na sua forma continuada, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.º 1 e 30.º do Código Penal.

    Por acórdão da Vara de Competência Mista do Tribunal da Comarca de Braga de 7 de Dezembro de 2005 foram, entre outros, os arguidos A. e B. condenados: o primeiro na pena única de sete anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico da pena de sete anos de prisão pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e artigo 30.º do Código Penal, e da pena de um ano de prisão pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido pelo artigo 6.º, n.º 1 da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho; a segunda na pena de sete anos de prisão, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e artigo 30.º do Código Penal.

  2. Inconformados, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo, nas conclusões da respectiva motivação, suscitado as seguintes questões de constitucionalidade:

    (…)

  3. O tribunal a quo interpretou as disposições conjugadas dos arts 188°, n° 4, segunda parte, e 101º, n° 2, no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal não tem de assinar o auto de transcrição dos gravações telefónicas nem sequer tem de certificar a conformidade da transcrição.

  4. Essa interpretação ofende o disposto nos arts 18°, n° 2, 32°, n.°s 1 e 8, e 34°, nºs 1 e 4, da CRP e é, por isso, inconstitucional, como tal devendo ser declarada, caso venha a considerar-se que é esse o sentido e conteúdo daquelas normas.

    (…)

  5. A interpretação contrária do artigo 188°, 3, adoptada pelo Juiz de Instrução Criminal e acolhida pelo Tribunal a quo ao considerar válidas as escutas efectuadas e ao valorizá-las como meio de prova superlativo e determinante para a condenação dos Recorrentes, que permite a transcrição de parte das gravações e a destruição definitiva e irremediável das partes restantes, implica uma ofensa inaceitável das garantias de defesa dos Arguidos e a violação ostensiva dos preceitos constitucionais já antes citados (arts 18°, n° 2, 32°, n.°s 1 e 8, e 34°, n.°s 1 e 4, da CRP), sendo, por isso, inconstitucional e como tal devendo ser declarada,

    (…)

  6. A interpretação do conjunto normativo integrado pela al. f) do n° 1 do artigo 1º, e pelos arts 358° e 359º que qualifique como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção dolosa do agente ofende as garantias mínimas de defesa do Arguido e a estrutura acusatória do processo, sendo, por Isso e por violação do disposto nos n.°s 1 e 5 do artigo 32° CRP, inconstitucional.

  7. Deve, portanto, considerar-se tais factos como não escritos e, em concomitância, absolver-se o Recorrente A. do crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo artigo 6° da Lei 22/95, de 27 de Julho.

    (…)

    Por acórdão de 22 de Maio de 2006, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedentes os recursos interpostos, confirmando integralmente a decisão recorrida.

  8. A. e B. interpuseram então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo, em 20 de Dezembro de 2006, sido proferido acórdão decidindo, entre o mais, “[N]não conhecer dos recursos dos arguidos A. e B., na parte em que suscitam as questões da nulidade das escutas e da alegada alteração substancial dos factos, por as respectivas decisões do Tribunal da Relação serem insusceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

    Deste acórdão vieram requerer «se esclareça se o douto acórdão em mérito considera ou não que “a interpretação ... do art° 188°, n° 3, adoptada pelo Juiz de Instrução Criminal e acolhida pelo Tribunal a quo ao considerar válidas as escutas efectuadas e ao valorizá-las como meio de prova superlativo e determinante para a condenação dos Recorrentes, que permite a transcrição de parte das gravações e a destruição definitiva e irremediável das partes restantes, implica a ofensa das garantias de defesa dos Arguidos e a violação ostensiva dos preceitos constitucionais já antes citados (arts 18°, n° 2, 32°, n°s 1 e 8, e 34°, n°s 1 e 4, da CRP)” e, por isso, se considera ou não que aquela norma, assim interpretada, é inconstitucional», solicitação que foi deferida por aresto de 7 de Fevereiro de 2007, em que se sublinha que “a decisão sobre essa matéria, como o dispositivo do acórdão inequivocamente refere, não foi a da improcedência do recurso, por se ter julgado inconstitucional a norma citada, na interpretação assinalada. Foi sim, a do não conhecimento do mesmo, da sua rejeição, por nessa parte, o acórdão recorrido ser insusceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”.

  9. Notificados deste aresto, A. e B. apresentaram o requerimento de fls. 4641 e 4641 verso, endereçado ao Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Guimarães, através do qual vieram interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), fazendo-o “porque se não conformam com o, aliás douto, acórdão proferido no processo crime identificado em epígrafe, pelo Tribunal da Relação de Guimarães no dia 22 de Maio de 2006” e “para apreciação da inconstitucionalidade dos seguintes diplomas e normas:

    – disposições conjugadas dos arts 188°, n° 4, segunda Parte e 10lº, n° 2, CPP, interpretadas no sentido de que o Juiz de Instrução Criminal não tem de assinar o auto de transcrição das gravações telefónicas nem sequer de certificar a conformidade da transcrição, por ofensa do disposto nos arts 18°, nº 2, 32°, nºs 1 e 8, e 34°, nºs 1 e 4, CRP;

    – art° 188°, n° 3, CPP, por ofensa dos citados arts 18°, n° 2, 32°, nºs 1 e 8, e 34°, n°s 1 e 4, CRP;

    – conjunto normativo integrado nela al. f) do nº 1 do art° 1º e pelos arts 358° e 359° do CPP, na interpretação que qualifique como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção dolosa do agente, por ofensa das garantias mínimas de defesa do Arguido e a da estrutura acusatória do processo penal e, por isso, do disposto nos n°s 1 e 5 do art° 32° CRP.

    Determinada a produção de alegações, os recorrentes concluíram assim as suas:

  10. A interpretação adoptada das disposições conjugadas dos arts 188°, nº 4, segunda parte, e 101°, n° 2, CPP, segundo a qual o JIC não tem de assinar o auto de transcrição das gravações telefónicas nem tem de certificar a conformidade da transcrição é inconstitucional, por ofensa do disposto nos arts 18°, n° 2, 32°, n°s 1 e 8, e 34°, n°s 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

  11. “A norma do artigo 188°, n° 3, do Código de Processo Penal, na interpretação (adoptada) segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo Juiz de Instrução Criminal, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância” é inconstitucional, por violação dos arts 18°, n° 2, 32°, n°s 1 e 8, e 34°, nºs 1 e 4, da CRP.

  12. A interpretação adoptada dos arts 1°, n° 1, al. f), 358° e 359° CPP, e em que assenta a condenação do Recorrente A. como autor material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art° 6° da Lei n° 22/95, de 27 de Julho, que qualificou como não substancial a alteração dos factos relativos aos elementos da factualidade típica e à intenção do agente e permitiu que os mesmos passassem a constar da sentença apesar de não constarem da acusação, é inconstitucional porque viola a estrutura acusatória do processo penal e, portanto, o disposto nos nºs 1 e 5 do art° 32° da Lei Fundamental.

    O Ministério Público contra-alegou, sustentando a não inconstitucionalidade de todas as normas do Código de Processo Penal, na interpretação que delas fizera a decisão recorrida.

    Cumpre apreciar e decidir.

    II

    Fundamentos

  13. No presente recurso de constitucionalidade são colocadas ao Tribunal Constitucional três questões distintas.

    Incide a primeira sobre as disposições conjugadas dos artigos 188º, nº 4 e 101º, nº 2, do Código de Processo Penal. Mais precisamente, pergunta-se se será ou não inconstitucional – por violação dos artigos 18º, nº 2; 32º, nºs 1 e 8; 34º, nºs 1 e 4 da Constituição – a norma a extrair da leitura combinada da parte final das duas disposições do CPP, quando interpretada no sentido de não impor ao Juiz de Instrução Criminal (i) o dever de assinar o auto de transcrição de conversas telefónicas interceptadas e gravadas e (ii) o dever de certificar a conformidade do...

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